sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A irritante resignação

Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 336.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Era amor à primeira vista...

Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Olstrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Reccord, 1999. p. 84.

domingo, 29 de junho de 2014

A terra do amor

Esta é, salta aos olhos e à inteligência, a terra do amor. Como se fosse preciso acrescentar que o último livro do crítico e professor do Colégio de França - Roland Barthes -, se chama Fragments d´un discours amoureux. É. todo mundo anda aos pares: Abelardo e Heloísa, Henrique IV e Gabrielle d´Estrées, a Pompadour e Luís XV, Yvonne Printemps e Pierre Fresnay, Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault, Roland Petit e Zizi Jeanmaire, a Greco e Michel Piccoli... Até o ménage à trois, instituição francesa, se abriga à sombra do casal. A solteirona, à brasileira, ou à mineira, não existe. Nem é, sequer, raça em extinção, como entre nós. É raça extinta. A celibatária vive aqui à sombra de código próprio. Com direito a fantasias e mais divagações amorosas. Dorme com quem quer, move-se livremente dentro de uma sociedade que aceita sem preconceito as uniões passageiras, com ou sem intuito de legalização. A escolha do celibato não se vincula à castidade. Nem nome conhecido (conhecidíssimo!!!) morreu, faz pouco, na casa da amantes, prostituta de preço.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 54-55.

domingo, 15 de junho de 2014

Celebração da hospitalidade

Gratidão hospitaleira
quarto ensolado,
nesga de azul a espantar pesadelos,
mar murmuroso a despertar naufrágios.
Entre muros
a florescida lição:
casa plantada no meio dos homens,
porta aberta a todos os ventos,
paredes caiadas de bênção divina.
Amiudado o riso
na dualidade harmônica,
nos chinelos solícitos,
nos pijamas aurorais,
no holocausto matinal de barba e sonho,
nas ilusões desfeitas
em espumas alvais de sacrifício.
O referente ofertório na toalha e no pão.
No lento mastigar, o ritual eucarístico.
Em diário suor, o cumprimento da promessa.
No descanso angular da poltrona,
a justificação do trabalho.
O preguiçoso divagar do fumo volátil,
livre espiral
        ágil e
        lábil.
No retângulo iluminado de imagens fugidias,
o refúgio do silêncio.
Oh! encantada surpresa
do trivial infantil
Alegria mansa
de fidelidade fiel
a
fiel companheira.
Tranquila amenidade
na berlinda
do merecido aplauso
e consagrado êxito.
A alma serena,
encolunada de cânones,
celebra hosanas
de devoto culto
em
vigília
genuflexa.

Receita de felicidade,
aprendido o susto,
bem medida,
temperada,
a quatro mãos
e cúmplice afeto,
com sabor requintado
de
i
mortalidade.

Na excelência do convite,
o exortado exemplo.
Na gratuito magistério,
privilégio de raros,
o gesto agradecido
da retribuição.
Mestre ontem,
hoje discípulo -
milagre dosado
em libra de sal - régio salário
à
solitária
disponibilidade.
Quanta lição!


Paris 15/2/1970.



QUEIROZ, Maria José de. Exercícios de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 30-32.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Recitação de inverno



QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O exercício do papel do usurpador

Esvaziados os conceitos de Direito e Justiça, nada resta ao legislador além da aplicação da lei pela lei. Isto é, o exercício do papel do usurpador. Incapaz de aplicar a justiça, o regime justifica a força, abolindo a liberdade. No entanto, a autoridade arbitrária - veículo transitório do poder, esgota-se em si mesma: nada mais enganoso que a imposição da lei pela força. Aquele que a ela se rende transfere ao regime o desvirtuamento do princípio de autoridade. E o abuso do poder reconduz, fatalmente, a liberdade à sua origem. Quem nada tem a perder, tem tudo a ganhar...

QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 97.

domingo, 9 de março de 2014

Agora canto

Agora canto,
sim,
canto:
a violência da calma, o furor do silêncio,
a revolta contida, a raiva, o rancor,
a fraude do afeto, o sangue, a ofensa,
o desdém ao recato, o insulto ao pudor.
Que ocorram às minhas palavras
a doçura do pomo maduro,
a peçonha da serpe maldita,
a ciência do bem e do mal.
E ao suor do castigo nefando
(que atou o pão ao trabalho)
se misturem as dores que sinto
ao trazer ao sol e ao calor
criatura de Deus concebida
em pecado e ao pó condenada.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris?  Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 44.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Diante de Osíris (Egito)

Livre dos laços do sangue,
imune à corrupção da carne,
subi à montanha de Tebas.
Mertseger, a amada de Osíris,
a amiga do silêncio,
encontrei-a à minha espera.
Aos quatro filhos de Horo
entreguei as minhas vísceras,
em quatro canopos embalsamadas.



Sob a proteção de Selkis
o meu corpo será preservado.
A Amset dei o meu fígado,
a Hapi, os meus pulmões,
a Duamutef, o meu estômago,
a Qebesenuf, as minhas entranhas.
Graças aos meus talismãs
e à lição do Livro dos Mortos
atravessei o reino da ausência
quando a noite submarina
naufragava na areia lodosa.
À força de atar nomes e signos
a escaravelhos, urnas e papiros,
aprendi a origem fatal
de todas as origens:
iniciei-me no ciclo solar,
no segredo das serpentes enroscadas,
no sigilo das cinzas do esquecimento,
no simbolismo do fumo em espiral,
no destino dos animais impuros.
Tomei o meu caminho,
isento de maus augúrios.
Beijei o umbral sagrado
de acesso ao saguão imenso
diante do Juiz soberano;
na Sala do duplo juízo
aguardei a minha sentença.
A mitra de cor branca
ressaltava-lhe a tez escura.
O olhar magnânimo,
Osíris acolheu-me com bondade.
Junto de enorme balança,
Maat — a deusa do Direito,
da Justiça e da Verdade,
assistida por Anubis e Horo.
Num canto, de cócoras,
Amamet — a Devoradora,
olhava-me com sanha,
pronta a punir meus pecados.
Mas Osíris, o Redentor,
Vigiava o monstro esfaimado.
Quarenta e dois juízes,
vinte e um de cada lado,
examinaram-me a consciência
tentando descobrir
o mais mínimo desvio,
a mais leve falta.
Chamando-os pelo nome,
um a um, sem vacilar,
recitei, gravemente,
a confissão bem decorada.
Declarei minha inocência:
dei pão a quem tinha fome,
dei água a quem tinha sede,
vesti os que estavam nus,
ao náufrago emprestei barca,
aos deuses levantei altares.
Fiz o de que falam os homens
e o de que se rejubilam
os que são glorificados.
Contentei a Deus
naquilo que Ele ama:
sou justo
e sem pecado.
As divindades propícias
iluminaram-me a memória,
afastaram de mim o receio,
afugentaram as estrelas febris,
fortaleceram-me a palavra.
Terminado o discurso,
convocaram meu espírito
para a pesagem da alma.
Anubis tomou o meu coração;
no outro prato da balança,
a equilibrá-lo,
a própria Maat — símbolo da Verdade.
Thot, vizir de Osíris,
Senhor do Verbo eterno,
consultou as suas tábuas:
nos dois pratos — o peso exato.
Na sua linguagem aérea,
de cores e de música,
em timbre de clarim,
a assembleia dos juízes
proclamou em voz alta
o veredito divino:
Que o morto seja livre,
livre para dispor de si mesmo,
livre e vitorioso
no seio dos espíritos
e no meio das divindades,
Senhor do tempo e do espaço.
Desde então guardo o campo dos deuses,
vigio diques e canais.
Os respondedores, meus escravos,
acorrem ao meu chamado
para eximir-me de trabalho.
Do mundo apenas me chegam
os séculos das idades
na perfeita sabedoria
de Thot
— o patrono da história. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 47-50.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Histórias encantadas

Os contos reunidos em El sueño de Natacha e Puck têm como fonte comum as clássicas histórias encantadas cujas personagens - Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, o duende Puck, etc. - povoam os sonhos das crianças de todos os tempos e todos os países.

A autora busca nos velhos contos populares, ou na imaginação, motivo para esses "poemas fantásticos". Muitas vezes recorre à própria experiência infantil e cria páginas originalíssimas. Adapta as personagens a novas condutas, apresenta-lhes situações diferentes, delimitando ou alargando-lhes o campo de ação.

A literatura infantil ganhou em Juana de Ibarbourou uma escritora que se faz criança a cada momento em que escreve para crianças.

QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1961. p. 55.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Amorem

En mi cuerpo tu buscas el monte,
a su sol enterrado en el bosque.
En tu cuerpo yo busco la barca
en mitad de la noche perdida.

                          Octavio Paz

Ingênuo alumbramento
dos sentidos acordados
na exaltação do afeto
ainda ontem refutado.

Nos ombros sacrificamos
orgulho de muitas casas,
preconceitos alarmados
de rochas e duas aras.



O tempo,
entre lábio e lábio
suspenso,
esquece horas,
relógio,
cinza, angústias e mágoa.

Em abraço confundidos,
na ávida procura de nós mesmos,
olhos nos olhos nos miramos,
olhos nos olhos nos perdemos.

Em delírio prosseguido
a nossas bocas sedentas
chegam carícias sem verbo,
falamo-nos em silêncio,
nos ouvimos a tato e medo.

Na voz febril do gesto,
ora sôfrego, ora manso,
percorremos o alfabeto.
Quando a sede se aplaca,
a ternura sobe às asas
e em espirais adeja,
ambiguamente casta.

Como de Formentor
a repetida vaga,
a vertigem dos sentidos
de novo nos arrebata.

Eis-nos embarcados,
e náufragos,
ainda uma vez,
e mais, e mais,
entre pedra e água.

Quando tuas mãos recuperam
seu antigo exercício
tudo volta ao que fora:
cabeça, tronco e membros,
a cada qual seu desempenho.

Olhos nos olhos nos buscamos
olhos nos olhos,
no olvido da ampulheta
e dos ponteiros.

Na tentação de existir,
Eu e Outro,
tu e eu,
corpo e alma,
corpo e alma entrelaçados,
afogamos dissabores
de rocha, âncoras e aras.

Entre luz e sombra
de outonal brumário,
mar alto, terra ao longe,
longe praia,
inventamos nosso porto
na encruzilhada das águas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 29-31.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Resgate do silêncio

Reduz-se a imanência
nosso inquieto deambular.
Recolhe-se o sobejo:
gesto, emoção, sentidos,
canto, voz e grito.
Em sutil clausura de pó
encerra-se o futuro
numa doce intimidade
de sombra e meteoro.
Horizontal, humilde,
servil e plana,
a terra triunfa
pés inquietos, mãos nervosas,
dedos ágeis,
na diversa profusão de ternura, tédio e ódio,
descansam em paz.

Lábios cerrados,
olhos enxutos,
no silêncio, nosso resgate;
vítimas caladas
somos cúmplices da eternidade. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 67.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Projeto de Doutorado em Letras - História, memória e cotidiano nas narrativas de Maria José de Queiroz

Título: História, memória e cotidiano nas narrativas de Maria José de Queiroz

Resumo: As narrativas de Maria José de Queiroz revelam a caracterização que a escritora faz da história e do cotidiano, afastando-se do pensamento idealista ou mítico, que considera como histórico apenas os grandes feitos e as ações próprias do mundo nobre, que valoriza os acontecimentos não em função de sua causa e da maneira como são produzidos, mas em razão da impressão que deixam na consciência das massas. Esse tipo de narrativa, que não se fixa nos detalhes e enfatiza a descrição de um cotidiano desconectado de dimensões históricas, tem, nos textos da escritora, um contraponto importante.



As questões cotidianas e históricas abordadas nos textos de Queiroz potencializam sua significação ao ampliar os relatos factuais em uma dimensão maior ao entremeá-los com a ficção e constituindo-o como versão e não como verdade absoluta.  Assim, sem ostentar o que poderia ser chamado de “status de verdade”, o texto de Queiroz revela o processo histórico colocando em xeque, pela fantasia, as versões oficiais, o relato factual, a verdade do ponto de vista dessa História que se quer “voz da verdade”. Este projeto, assim, objetiva estudar essa estratégia de revisitação da história e, portanto, da memória, na obra de Maria José de Queiroz.

Orientadora: Profa. Dra. Constância Duarte
Doutoranda:  Maria Lúcia Barbosa
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG
Período: 2014-2017.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Na festa brasileira

Na festa brasileira por excelência, o Carnaval, em que há grande preocupação com guarda-roupa, adereços e respeito à verossimilhança, os índios são representados de forma caricatural. Além do desconhecimento de usos e costumes dos primitivos aborígenes, ignora-se, até, a cor da sua pele. Não é outra a verificação do professor John Monteiro, do Departamento de História da USP, autor do livro Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (São Paulo: Companhia das Letras, 1994). "A história [matou] os índios", declara o professor norte-americano. E continua: "Estudar índio é tabu entre os historiadores. Em outras partes das Américas, a etno-história, ou história indígena, é escrita tanto por historiadores como antropólogos. Aqui tem sido assumida por antropólogos." 

QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 127.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

To die in Rio…


    
Meus caros:

Vocês se lembram, de To die in Madrid?

Pois é. Trata-se do documentário francês, Mourir à Madrid (1963) dirigido por Frédéric Rossif: elenco de prestígio, converteu-se em cult — o mais real e dramático enfoque da Guerra Civil Espanhola — guerra que dividiria o Ocidente e enlutaria centenas de famílias.1
Entre seus heróis, André Malraux, escritor francês, autor de A condição humana (La condition humaine, 1933), sobreviveria aos raids aéreos e aos combates no front: não só lutou e sobreviveu em Madri, como participou da resistência a Franco, morrendo, de morte morrida, em 1976.
De seu engajamento politico dariam testemunho o romance A esperança (L'Espoir, 1937) e Serra de Teruel (Sierra de Teruel,1945). No desempenho das funções de Ministro da Cultura (1958/1969, gov. De Gaulle), realizaria o inadmissível: o resgate, para o presente, da passada grandeza da capital: fez raspar e limpar as fachadas dos grandes monumentos históricos. Paris se réveille
Fundou, ainda, as Casas de Cultura (Maisons de la culture), uma para cada cidade, a fim de permitir o acesso a leitores, estudiosos, artistas e pessoas humildes, de cada município, às grandes obras do espírito. Ao morrer de sua morte, legava ao país, além de vasta bibliografia, obra pública irretocável.
Voltemos à nossa própria casa. 
Se o Rio é o que canta o coral ianque, posso dizer-lhes, mineira que sou, estar disposta a morrer no Rio. 
Primeiro, porque esse refrão é pra inglês ouvir. 
Segundo, porque o Rio nunca deixará de ser a mais bela capital do Novo Continente. E disputa, com Paris, tal excelência. Exibe, a olhos de ver, a beleza natural de sua baía e suas montanhas, das alturas dos Dois irmãos, ao alcance da vista, ao Corcovado e ao Cristo. Dali, em glissado vertiginoso, o olhar abarca o areal branco de Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra. Se o belo é a perfeição, os portugueses o descobriram para o mundo e para nós, seus herdeiros. 
Terceiro, não há, no país, população mais cordial, alegre e solidária que a carioca. E, tenho certeza, não só criou como pratica o "jeitinho brasileiro" de ser (que os mineiros me perdoem).
E há mais: conceberam, e realizam, cantando e dançando, a mais bela festa do mundo — hino multifário, como a banda, coral de celebração da Diferença,  do Plural de todos e da Euforia de viver. 
Saibam que não me serve de SOS o refrão made nowhere desse blablalá, nem, tampouco, o aviso das placas que se leem nas passagens de nível: OLHE  PARE  SIGA.
Depois de ver e admirar nossa baía,  extasiado à contemplação da  Guanabara (e registrou-o em livro), Stefan Zweig optaria por  morrer, com sua companheira, longe do Rio: parou, olhou, viu e seguiu para Petrópolis, fugindo de Hitler e do Nazismo...
Também fiz minha opção: não sigo senão a Paris, cidade-luz , por sua beleza arquitetônica e seu patrimônio histórico. Mas estarei de volta à nossa cidade maravilhosa. Sempre. 
Morrer? Quem há-de salvar-se? Se morreremos todos… Quem escolhe a data? Onde?
Os heróis da guerra civil espanhola e da Força Expedicionária Brasileira, composta de voluntários, os nossos “pracinhas”, responderam, ombro a ombro, em forma, à chamada geral. 
A Nossa América pôs-se em marcha, arma em punho, no combate contra o Eixo, em Monte Cassino e Monte  Castelo, nas Batalhas de Cassino e Castello, em defesa da Europa. 
Descansam, agora, em paz: em Pistóia. 
É isso aí.
Maria José de Queiroz
Paris, 23 de dezembro de 2013.
===
Frédéric Rossif (1922, Montenegro, antiga Iugoslávia /1990, Paris). Diretor de filmes e documentários para a tela do cinema e televisão, colaborou, frequentemente, com o compositor Maurice Jarre. Depois de perder toda a família durante a Segunda Grande Guerra, emigra à Itália, estuda em Roma e engaja-se, em 1944, na Legião Estrangeira. Já em Paris, em 1945, passa a trabalhar no Club Saint-Germain e dá início à carreira  no cinema. Atua na Cinémathèque Française, organiza o festival de Vanguarda de Antibes (1949/50) e é contratado, em 1952, pela ORTF. Seu filme Mourir à Madrid (script a duas mãos, com a escritora Madeleine Chapsal) recebe o Prêmio Jean Vigo de 1963, tendo sido indicado, pela Academia, para o Prêmio destinado ao Documentário do ano. No cast  de Mourir à Madrid, incluem-se, entre outros, Suzanne Flon, Pierre Vaneck, Jean Vilar, John Gieguld etc. É de 1970, seu único filme não documentário, Aussi loin que l’amour, que teria Salvador Dalí entre seus atores. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

A hora de Jorge Luís Borges

Quem nos últimos anos esteve em Paris, em espírito ou em letra, provavelmente ouviu a pergunta insistente e curiosa: leu o último livro de Foucault? E que pensa de Les mots et les choses? Diários, folhetos, semanários, revistas abriram páginas e colunas para discutir e analisar um livro dos mais importantes publicados na França desde o advento do existencialismo. Como se inicia?  Com um texto de Borges. Nos Entretiens de 1966, realizados em Cerisy-la-Salle, para discutir Les Chemins Actuels de la critique, um nome veio constantemente às falas e apartes dos congressistas: o do argentino genial. Claro que também se fez menção a Barthes, a Althusser e a Bachelard... A verdade é que esperamos mais de quatro séculos para que nos aceitassem como latino-americanos à mesa do banquete da cultura e da civilização.

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 58.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Eles queimaram livros

No outono de 1942, a Biblioteca Pública de Nova Iorque organizaria uma exposição dos livros proibidos e queimados na Alemanha. Patrocinada por Eleanor D. Roosevelt, Albert Einstein e mais personalidades políticas, escritores, cientistas e professores, a mostra foi inaugurada com discursos e protestos de repúdio ao auto-de-fé. Autores ingleses e americanos, cujas obras tinham sido proibidas pelos nazistas, deram seu testemunho. Sucedem-se exposições, reuniões, conferências e debates, sempre em torno da fúria incendiária do Terceiro Reich. Bandeiras a meio pau divulgam o luto das bibliotecas e das escolas do país; numa emissão especial, a cargo de Stephen Vincent Benet, a NBC chama a atenção do país para o crime nefando: They burned the books - Eles queimaram livros. Para registro ad perpetuam rei memoriam, editou-se uma brochura, para distribuição nas escolas, sob o título Ten years ago the nazis lighted the way of their own destruction - Há dez anos os nazistas iluminaram o caminho de sua própria destruição.
Mas a comemoração não estaria completa se não se ouvisse a voz do campeão da liberdade - o presidente dos Estados Unidos. Ao falar sobre a data abominável - 10 de maio de 1933 - Roosevelt declara:

"Sabemos todos que os livros se queimam. Mas sabemos ainda mais que os livros não podem ser destruídos pelo fogo. Os homens morrem mas os livros não morrem nunca. Nenhum homem e nenhuma violência podem extinguir a sua lembrança. Nenhum homem e nenhuma violência podem encerrar o pensamento, para sempre, num campo de concentração. Nenhum homem e nenhuma violência podem expulsar do mundo os livros que exprimem o eterno combate da humanidade contra a tirania. Nós sabemos que, nessa guerra, os livros são armas".

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 597.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

No fim do caminho estava Vila Rica

Nossa existência parecia em suspenso. O medo da virada do século não voltara a preocupar minha mãe. As angústias do regresso, intensas no início da viagem, já me haviam abandonado. O movimento da cavalgadura, a presença de gente estranha, a mudança de paisagem, a constante e sucessiva diferença de clima - tudo isso me descansava, fazendo-me esquecer que no fim do caminho estava Vila Rica. Nunca fui tão livre: livre do meu tempo, dos meus pensamentos e das minhas emoções. Abrasada às vezes de calor durante o dia, gelada de frio durante a noite, pouco me importavam as fadigas físicas. Fui quase feliz. Mais que isso: fui feliz.

QUEIROZ, Maria José. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 124.