sexta-feira, 17 de março de 2017

Os 31 livros de Maria José de Queiroz


Fotografia dos 31 livros de Maria José de Queiroz, na palestra na Faculdade de Letras da UFMG.
O Brasil não conhece o Brasil.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Limites

Euclides, vivo, incomodava a todos. Tivera êxito nos negócios, gozava de excelente fama entre as mulheres... que mais queria? É isso que importa! Nadie o entendia. Ele inquietava e escandalizava. Suas ambições escapavam ao homem comum. À força de agitar-se, de agir, de angustiar-se, foi longe demais: alcançou o proibido. Sempre me repetia que o seu maior desejo era conhecer seus própios límites: queria saber até onde iria. Em tudo. Falta sempre alguma coisa ao homem que jamais experimentou essa vertigem, confessou-me certa vez. Nesse dia, ele chegara a um dos seus abismos: o da fúria homicida. Um dos seus empregados abusara de uma indiazinha. Euclides foi procurá-lo: ele tinha de reparar o crime. O empregado, cínico, replicou que apenas se antecipara ao pai, aos irmãos ou à indiada suja que, em obediência ao hábito, se encarregariam de fazê-la mulher. Ela, índia, devia-lhe um privilégio: ele, branco, dera-lhe a provar o gosto do sexto de uma raça superior. Euclides, fora de si, atirou-o ao chão. Ao vê-lo por terra, seu primeiro ímpeto foi matá-lo, à frio. Quase sucumbiu à tentação. Era o seu límite. Vencida a vertigem, pôs o revólver na cintura. A mão direita em garra, presa ao pescoço do homem, levantou-o para aplicar-lhe punição mais eficaz: com um pontapé vigoroso, privou-o, vitaliciamente, de iniciar nos mistérios do sexo índias e brancas, sem discriminação de raça.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999. p. 220.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O canto do cisne



Não, o cisne não canta
ao aviso da morte.
Nenhuma voz anima
o seu último silêncio
na solidão das águas.
No bico secreto,
com timbre preciso,
o peixe ágil,
o lodo, o verme.
No momento inacessível
em que os juncos adormecem,
o seu pescoço se alonga
à procura de outra forma.
É o cisne o seu próprio canto
no risco definitivo
do corpo sem metáfora.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 68.

domingo, 22 de janeiro de 2017

Yehudá Abrabanel

Yehudá Abrabanel (nome que o próprio escritor trocaria por León Hebreo - leão, atributo da tribo de Judá; hebreo, pela sua religião) nasceu em Lisboa, entre 1460-65. Era filho do célebre Isaac Abrabanel, uma das maiores figuras do judaísmo. Foi com o pai que se iniciou na filosofia e na teologia. Foi médico de profissão e como a astrologia se confundia com os estudos de medicina, sua obra está marcada pelos estudos dos astros e sua influência na vida dos homens.

QUEIROZ, Maria José de. A América: a nossa e as outras. Rio de Janeiro: Agir, 1992. p. 106.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Qual flor sem haste

Vicente Huidobro
Dessarte, a literatura hispano-americana, qual flor sem haste, enfeita as jarras brasileiras, alimenta conversas de sobremesa, de curta duração. Ninguém se interessará em descobrir, no passado, as razões do prestígio, entre nós, de um Rubén Darío, de um Rodó ou de um Amado Nervo. Terminada a atual coqueluche, ninguém perguntará, à maneira de Unamuno, "Y antes?", nem tentará averiguar se depois de Gabriela Mistral, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Gabriel García Márquez e Octavio Paz seremos ainda dignos de outro Nobel de Literatura. Continuaremos todos a ignorar que o teatro moderno nasce com La verdad sospechosa, de Juan Ruiz de Alarcón, que José-María de Heredia era cubano; Laforgue, Lautréamont e Supervielle, uruguaios; William E. Hudson, argentino; e que os caligramas do chileno Huidobro são anteriores aos de Apollinaire. Enquanto isso, César Vallejo mastigará grama e silêncio em Montparnasse e Enrique Banchs continuará desconhecido. Nesta América infeliz e miserável, à qual, por isso mesmo, a Academia sueca distinguiu com os seus prêmios Asturias e Neruda, talvez se leiam, algum tempo ainda, El Señor Presidente e o Canto general. Depois, tudo será naufrágio... Como está no verso do grande poeta chileno.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p. 141.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Nunca houve, nem haverá, uma cidade como Berlim

Nunca houve, nem haverá, uma cidade como Berlim. Tive a impressão de que estávamos na véspera do fim do mundo. Abraham me repetiu um dia a frase de uma amiga sua: "Aqui, uma mulher custa um cigarro e um quilo de pão, um milhão de marcos". Mas não era só a mulher: o homem também valia pouco. O que custava caro era a comida. Num cartaz de cabaré, li e anotei esta frase formidável: "Berlim, teu parceiro de dança é a morte". E a morte veio com a guerra. Tudo o que aconteceu depois você já sabe. Faz parte da história: os conflitos entre nazistas e comunistas, os desfiles de rua e o fatídico 10 de maio, quando Goebbels e os estudantes lançaram ao fogo milhares de de livros. Quando a Alemanha foi invadida eu já estava no Brasil.

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 173. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Folha dilacerada

Num quarto de hotel, sozinha, às dez da noite, a desenterrar suas mágoas. Rasgou a arenga larga. Em dois pedaços. Depois, em quatro. Logo, em oito. Quis, então, reler uma frase. Dispôs com atenção a folha dilacerada sobre a cama. Logrou, a pouco e pouco, recuperar todo o texto. O seu quebra-cabeça estava armado. Excelente distração para a noite que se anunciava longa e insone. Rearticulou períodos e parágrafos. Tudo bem encadeado. Para que as seis páginas se dispusessem, sem prejuízo para a leitura, em toda a sua extensão, transportou-as para a mesa, firme e plana. Miudamente, com prazer masoquista, dividiu em dois cada pedacinho de papel. E voltou a armar quatro, cinco, diversas vezes, as seis folhas. Página por página. Avesso e direito, alternadamente. 

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 81. 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dos insetos, das orquídeas, do mata-pau


Ele já se encontrava na  Colômbia. Muito didaticamente me falava do engano das suas "invenções". Mas não diminuiu, aos meus olhos, a importância da paisagem desconhecida. Alargou-se, em considerações pitorescas, acerca das trepadeiras, das borboletas, dos insetos, das orquídeas, do mata-pau, das palmeiras e da vitória-régia. Tudo quanto de belo se encontrava pelo caminho parecia-lhe, confessava cioso da sua autoridade, compensar brilhantemente a ausência de meia dúzia de leões, girafas ou elefantes, animais que não tinham nem a metade do encanto das grandes famílias ululantes de macacos e micos, de papagaios, tucanos e garças, de jacarés, serpentes, sapos, tartarugas. Mostrei a mamãe, altaneiro,  que o engano do tio fora até providencial: era muito melhor ter um peixe-boi, um pirarucu ou uma sucuri que ter duas centenas de hipopótamos. 

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 29.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Desde longe, na infância






















Elle a dû faire toutes les guerres
Pour être si forte.

Je l’aime à mourir...


Desde longe na infância,
dois talheres à mesa,
minha mãe à cabeceira,
voz pausada repetia:
“Temos teto e comida!
Isso basta!”

É a vida.
É o luto.
E ... por que não?
Isso basta...

Entre pêsames e abraços,
teve fim o cunhadesco:
na voz impiedosa
do tio cruel,
descobri que era órfã.

Restaram três avós
— Alcina, Joana e Mariquinha,
mais vô Solídio e vô Juca,
uma tia e três outras,
uma prima e quatro primos.

Veloz nos patins
e esperto no ludo,
o menino grande,
tio materno,
me vencia em tudo.

Não reclame!
A vida é combate.
Aprenda a jogar!
Livros não faltam.
Que mais quer?
O resto é o resto.
Deus proverá.

A tempo e hora,
livros nunca faltaram:
mais grossos a cada semestre,
a cada ano, mais caros.

Sempre só e sem socorro,
sem amigos nem amigas,
tudo vendo, tudo ouvindo,
a meu pai pedi em lágrimas
me acompanhasse vida afora,
me ajudasse e libertasse.

Sobrevivi.
Sobrevivemos:
ambas.
À rotina dos meses,
sobressaltos não faltavam.
Nem doenças, nem lágrimas.
Deus é grande!, proverá.

Os meses, a galope,
com seu rol de surpresas,
e a música, sempre a música,
seu fascínio e sortilégio:
“Decifra-me ou devoro-te”.

Enfrentei fuga e contraponto,
devorou-me a harmonia...
As letras se vingaram,
fazendo-me prisioneira
de códices e incunábulos.

O suor do rosto,
o sal do pão e os livros:
o trabalho e os livros,
diplomas e livros...
Livros e provas,
provas e teses,
concursos e concursos,
sessenta e quatro aulas
metidas numa semana...

Como se a eternidade fosse isso,
das seis às onze,
apenas isso,
entre muitas luas
e quatro estações:
trabalho e trabalho ...
e livros, e livros...

Num 31 de março,
à meia-noite me avisaram:
“As tropas descem a Mantiqueira!
Oh, menina!, corre pra casa!"

E o tempo passou.
Voando...
Simples e claro:
seis dias úteis,
o salário e o pão,
missa aos domingos,
revisão de provas,
editores e gráficos,
livros e mais livros,
leitores ariscos,
edições minguadas.

O direito de ir e vir,
fechar portas e janelas,
fazer malas, muitas malas...
Partir.
Deus seja louvado!

O resto?
Pedra nos rins, costela quebrada,
artrose, osteoporose, catarata,
angina e enfarto...

Quem escapa de doença?
Qual nada!
Dá-se um jeito!
Só não há jeito
nem cura, para a morte.
Ou... olho furado!
Deus é pai...
Isso passa!

E passou.

Fomos vivendo:
o piano, o aperitivo sonoro,
dois talheres à mesa,
flores no jardim,
nêsperas anunciadas.

O Brasil é grande!
O horizonte, largo...
É hora de mudar!
Os livros não respondiam
à urgência da partida:
uma biblioteca inteira,
coleções de revistas,
tudo passa a outrem
ou a outros....
Tudo passa.
Que fazer?
A hora era aquela:
da noite para o dia,
papéis e papéis,
traças e tralha,
o coração aos pulos,
o piano suspenso no ar...
Paciência...
Deus proverá.

Ano novo, casa nova,
finestra sul mare.
Dois talheres à mesa...
E mais um e mais dois...
Novos amigos,
livros e livros,
Nava, Drummond, Afonso e Alfonsus,
Mário, Cyro e Murilo ...
Torre de papel ao sabor das palavras:
Plínio em prosa e verso — o Sabadoyle

Os anos passando
o tempo encurtando,
a Indesejada à porta.
O alarme.
Mas... Deus é Deus!
Vencemos o Cabo!

A Indesejada não desiste:
apenas adia o golpe fatal.
Assepsia completa.
Um talher à mesa,
sussurros pela casa:
contam-se gotas e segundos.
A vida escassa,
se mede, se apalpa
e deixa-se auscultar
no tronco descarnado:
pele e ossos. Mais ossos que pele,
o olhar fixo, a boca selada.

Já não vivo em mim.
O ano passa...

Quando o sopro se retrai.
o pulso se arrasta,
a vida bate em retirada:
soberba e triunfante,
a Indesejada, de alcateia,
me arranca,
entre dois suspiros,
metade da alma.

Perdi meu rumo e meu caminho,
minha literatura e minha música,
meu alfabeto e minha pauta,
todas as árias, todos os enredos,
os lieder de Schubert...
todas as canções de Duparc...

Todo es polvo, es sombra, es nada.

Paris, outubro 2009.

QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. p. 22-28.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Acaiaca, 1938

Muro alto, saias longas, portas fechadas. Golas e punhos bem cerrados, janelas trancadas. Nenhum retrato nenhuma identidade. Nada que a obrigasse a sair, a enfeitar-se. Em casa se reza. Em casa se salva. Um, dois, três, oito filhos multiplicados por nove meses de espera fazem seis anos de reclusão entre sala, cozinha e quartos. Mas a morte veio, calada, esconder-se nas tripas de Artur de Lima Gonçalves. O muro caiu, abriram-se as portas, perdeu-se o cadeado. Bisturis, soro, sangue, emplastos: o câncer roía-lhe a carne, as entranhas se lhe convertiam em água. A mão que lhe assinou o óbito deu nome à família, vestiu de noiva a viúva, resgatou-lhe os filhos  da orfandade. A casa aberta a todos os ventos, viveram felizes em Acaiaca.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 164-165.

domingo, 6 de novembro de 2016

Que o novelo se desenrede...


Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 62-63.

sábado, 22 de outubro de 2016

Os bárbaros de hoje

Numa posição privilegiada, a dois passos da ponta extrema da Europa, a península ibérica representaria papel preponderante na hegemonia política do mundo. Imantada pelo fascismo ou pelo comunismo, arrastaria, fatalmente, o país vizinho, Portugal, o que bastaria para perturbar o equilíbrio de força e poder entre as "grandes nações". Foi o que aconteceu. Decididas a dirigir o curso da história no século XX, dividiram entre si o império do mundo. Feita a partilha, cada qual para o seu lado, o fim do século assiste, tal como ocorreu a Roma, à desintegração, às invasões bárbaras, ao derramamento de sangue... Não há mesmo nada de novo sob o sol... Os bárbaros de hoje são os turcos, os africanos, os albaneses...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, o príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 174.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Três mulheres
















Vil e cuidosa espera!

Enovelam-se ausências
na tela bem urdida.
Selam-se lábios e ouvidos
no serviço das mãos,
de esperto e aplicado ritmo.

Para Ulisses, o barco,
todas as tentações do mar
e a sedução das sereias
no eterno convite da distância
e no apelo do vento.
Para Penélope, agulha e silêncio:
meses e anos
de entretido e complicado enredo.
No labirinto de longos fios:
idas e voltas, fundos suspiros,
nenhuma surpresa,
nenhum risco.

O heroísmo navega
longe de linhas e rendas
olhos presos ao infinito.

Vil e cuidosa espera!

Em tinta e letra
o fogo se converte.
Na página branca e fria
lavram labaredas:
sem pudor nem comedimento
porque o resto (se o sabemos!)
é silêncio.
Nas cartas sem resposta,
no amor sem endereço,
o alívio e a pena.

Vil e cuidosa espera!

Na praia se levantem fogueiras,
de vivas e altas chamas,
nelas se lancem lembranças,
ternura, vulto e nome.

E ao largar da nave
Enéias não mais veja
pira a declamar-lhe afeto
sem razão e sem pretexto.
Dido soberana,
olhos enxutos, morto anseio,
no ar escreva adeuses
e ao mar entregue despojos
do amor vivido - cinza breve.

Paris, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 32-34.

domingo, 14 de agosto de 2016

Meu sonho era ser violinista

Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro. 

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 102. 


domingo, 24 de julho de 2016

Alforria


Alforria:
recuperar intimidades
escravizadas a alheio mando;
mobilar de eu e migo
as veredas da alma;
deixar de meter tu e tigo
em toda fiada ilusão.

Reencontrar-se
no ritmo recolhido
das carícias,
no grave olhar,
na acorde harmonia
de pessoa e máscara.
Reassumir nos ombros
o exercício dos braços.

Tudo volta ao antigo posto:
a liberdade corre às pernas
e instala-se no calcanhar.

Os pés demandam caminhos
na avidez de povoar de espaço
os rastos intervalares.

Paris, janeiro, 1970.

sábado, 16 de julho de 2016

Os passos prosseguem

Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.

QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 25.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Recitação de inverno
















Invenção de roteiro para jornada a dois pés:
recolher carícias à palma das mãos,
prendê-las entre os dez dedos.
Selar os lábios à lírica doçura do verbo,
engolir sílabas ternas, explosivas, fricativas,
renunciar, mesmo, às oclusivas.

Entronizar silêncio,
descobrir entre lábio
e lábio
o repouso horizontal
da inteligência muda.
Aprisionar o incendiado lume
que atravessa os olhos.
Clausurar emoções,
fingir indiferença,
alimentar monólogos.
Triunfalmente só,
reinventar
factícialmente
a alegria de ser
para "gozar a solas
del bien que debo al cielo
a solas,
sin testigo,
sin piedad,
sin amor
ni desconsuelo".


Paris, janeiro, 1970.


QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

sábado, 18 de junho de 2016

Solilóquio

"mi soliloquio es plática con este buen amigo
que me enseño el secreto de la filantropia."

(Antonio Machado, Retrato)

Encruzilhada de todos os caminhos,
termo obrigado de qualquer empenho,
princípio e fim de todo enredo,
eis-me aqui.

Na diária intensidade do eu,
pronome pessoal primeiro,
em exercício de humana declinação,
construo ilusões, fabrico desvarios.

De egoísmo em egoísmo
me demonstro.
Sob signo de Gêmeos
determino.

Entre dúvida e dilemas
procuro segurança
para vida errante,
varrida pelos ventos
de rosa efêmera,
a que faltou perfume
de constâcia, raiz firme,
permanência.

Belo Horizonte, primavera de 1970 (outubro).

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 94-95.