quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Diante de Osíris (Egito)

Livre dos laços do sangue,
imune à corrupção da carne,
subi à montanha de Tebas.
Mertseger, a amada de Osíris,
a amiga do silêncio,
encontrei-a à minha espera.
Aos quatro filhos de Horo
entreguei as minhas vísceras,
em quatro canopos embalsamadas.



Sob a proteção de Selkis
o meu corpo será preservado.
A Amset dei o meu fígado,
a Hapi, os meus pulmões,
a Duamutef, o meu estômago,
a Qebesenuf, as minhas entranhas.
Graças aos meus talismãs
e à lição do Livro dos Mortos
atravessei o reino da ausência
quando a noite submarina
naufragava na areia lodosa.
À força de atar nomes e signos
a escaravelhos, urnas e papiros,
aprendi a origem fatal
de todas as origens:
iniciei-me no ciclo solar,
no segredo das serpentes enroscadas,
no sigilo das cinzas do esquecimento,
no simbolismo do fumo em espiral,
no destino dos animais impuros.
Tomei o meu caminho,
isento de maus augúrios.
Beijei o umbral sagrado
de acesso ao saguão imenso
diante do Juiz soberano;
na Sala do duplo juízo
aguardei a minha sentença.
A mitra de cor branca
ressaltava-lhe a tez escura.
O olhar magnânimo,
Osíris acolheu-me com bondade.
Junto de enorme balança,
Maat — a deusa do Direito,
da Justiça e da Verdade,
assistida por Anubis e Horo.
Num canto, de cócoras,
Amamet — a Devoradora,
olhava-me com sanha,
pronta a punir meus pecados.
Mas Osíris, o Redentor,
Vigiava o monstro esfaimado.
Quarenta e dois juízes,
vinte e um de cada lado,
examinaram-me a consciência
tentando descobrir
o mais mínimo desvio,
a mais leve falta.
Chamando-os pelo nome,
um a um, sem vacilar,
recitei, gravemente,
a confissão bem decorada.
Declarei minha inocência:
dei pão a quem tinha fome,
dei água a quem tinha sede,
vesti os que estavam nus,
ao náufrago emprestei barca,
aos deuses levantei altares.
Fiz o de que falam os homens
e o de que se rejubilam
os que são glorificados.
Contentei a Deus
naquilo que Ele ama:
sou justo
e sem pecado.
As divindades propícias
iluminaram-me a memória,
afastaram de mim o receio,
afugentaram as estrelas febris,
fortaleceram-me a palavra.
Terminado o discurso,
convocaram meu espírito
para a pesagem da alma.
Anubis tomou o meu coração;
no outro prato da balança,
a equilibrá-lo,
a própria Maat — símbolo da Verdade.
Thot, vizir de Osíris,
Senhor do Verbo eterno,
consultou as suas tábuas:
nos dois pratos — o peso exato.
Na sua linguagem aérea,
de cores e de música,
em timbre de clarim,
a assembleia dos juízes
proclamou em voz alta
o veredito divino:
Que o morto seja livre,
livre para dispor de si mesmo,
livre e vitorioso
no seio dos espíritos
e no meio das divindades,
Senhor do tempo e do espaço.
Desde então guardo o campo dos deuses,
vigio diques e canais.
Os respondedores, meus escravos,
acorrem ao meu chamado
para eximir-me de trabalho.
Do mundo apenas me chegam
os séculos das idades
na perfeita sabedoria
de Thot
— o patrono da história. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 47-50.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Histórias encantadas

Os contos reunidos em El sueño de Natacha e Puck têm como fonte comum as clássicas histórias encantadas cujas personagens - Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, o duende Puck, etc. - povoam os sonhos das crianças de todos os tempos e todos os países.

A autora busca nos velhos contos populares, ou na imaginação, motivo para esses "poemas fantásticos". Muitas vezes recorre à própria experiência infantil e cria páginas originalíssimas. Adapta as personagens a novas condutas, apresenta-lhes situações diferentes, delimitando ou alargando-lhes o campo de ação.

A literatura infantil ganhou em Juana de Ibarbourou uma escritora que se faz criança a cada momento em que escreve para crianças.

QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1961. p. 55.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Amorem

En mi cuerpo tu buscas el monte,
a su sol enterrado en el bosque.
En tu cuerpo yo busco la barca
en mitad de la noche perdida.

                          Octavio Paz

Ingênuo alumbramento
dos sentidos acordados
na exaltação do afeto
ainda ontem refutado.

Nos ombros sacrificamos
orgulho de muitas casas,
preconceitos alarmados
de rochas e duas aras.



O tempo,
entre lábio e lábio
suspenso,
esquece horas,
relógio,
cinza, angústias e mágoa.

Em abraço confundidos,
na ávida procura de nós mesmos,
olhos nos olhos nos miramos,
olhos nos olhos nos perdemos.

Em delírio prosseguido
a nossas bocas sedentas
chegam carícias sem verbo,
falamo-nos em silêncio,
nos ouvimos a tato e medo.

Na voz febril do gesto,
ora sôfrego, ora manso,
percorremos o alfabeto.
Quando a sede se aplaca,
a ternura sobe às asas
e em espirais adeja,
ambiguamente casta.

Como de Formentor
a repetida vaga,
a vertigem dos sentidos
de novo nos arrebata.

Eis-nos embarcados,
e náufragos,
ainda uma vez,
e mais, e mais,
entre pedra e água.

Quando tuas mãos recuperam
seu antigo exercício
tudo volta ao que fora:
cabeça, tronco e membros,
a cada qual seu desempenho.

Olhos nos olhos nos buscamos
olhos nos olhos,
no olvido da ampulheta
e dos ponteiros.

Na tentação de existir,
Eu e Outro,
tu e eu,
corpo e alma,
corpo e alma entrelaçados,
afogamos dissabores
de rocha, âncoras e aras.

Entre luz e sombra
de outonal brumário,
mar alto, terra ao longe,
longe praia,
inventamos nosso porto
na encruzilhada das águas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 29-31.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Resgate do silêncio

Reduz-se a imanência
nosso inquieto deambular.
Recolhe-se o sobejo:
gesto, emoção, sentidos,
canto, voz e grito.
Em sutil clausura de pó
encerra-se o futuro
numa doce intimidade
de sombra e meteoro.
Horizontal, humilde,
servil e plana,
a terra triunfa
pés inquietos, mãos nervosas,
dedos ágeis,
na diversa profusão de ternura, tédio e ódio,
descansam em paz.

Lábios cerrados,
olhos enxutos,
no silêncio, nosso resgate;
vítimas caladas
somos cúmplices da eternidade. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 67.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Projeto de Doutorado em Letras - História, memória e cotidiano nas narrativas de Maria José de Queiroz

Título: História, memória e cotidiano nas narrativas de Maria José de Queiroz

Resumo: As narrativas de Maria José de Queiroz revelam a caracterização que a escritora faz da história e do cotidiano, afastando-se do pensamento idealista ou mítico, que considera como histórico apenas os grandes feitos e as ações próprias do mundo nobre, que valoriza os acontecimentos não em função de sua causa e da maneira como são produzidos, mas em razão da impressão que deixam na consciência das massas. Esse tipo de narrativa, que não se fixa nos detalhes e enfatiza a descrição de um cotidiano desconectado de dimensões históricas, tem, nos textos da escritora, um contraponto importante.



As questões cotidianas e históricas abordadas nos textos de Queiroz potencializam sua significação ao ampliar os relatos factuais em uma dimensão maior ao entremeá-los com a ficção e constituindo-o como versão e não como verdade absoluta.  Assim, sem ostentar o que poderia ser chamado de “status de verdade”, o texto de Queiroz revela o processo histórico colocando em xeque, pela fantasia, as versões oficiais, o relato factual, a verdade do ponto de vista dessa História que se quer “voz da verdade”. Este projeto, assim, objetiva estudar essa estratégia de revisitação da história e, portanto, da memória, na obra de Maria José de Queiroz.

Orientadora: Profa. Dra. Constância Duarte
Doutoranda:  Maria Lúcia Barbosa
Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG
Período: 2014-2017.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Na festa brasileira

Na festa brasileira por excelência, o Carnaval, em que há grande preocupação com guarda-roupa, adereços e respeito à verossimilhança, os índios são representados de forma caricatural. Além do desconhecimento de usos e costumes dos primitivos aborígenes, ignora-se, até, a cor da sua pele. Não é outra a verificação do professor John Monteiro, do Departamento de História da USP, autor do livro Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (São Paulo: Companhia das Letras, 1994). "A história [matou] os índios", declara o professor norte-americano. E continua: "Estudar índio é tabu entre os historiadores. Em outras partes das Américas, a etno-história, ou história indígena, é escrita tanto por historiadores como antropólogos. Aqui tem sido assumida por antropólogos." 

QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 127.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

To die in Rio…


    
Meus caros:

Vocês se lembram, de To die in Madrid?

Pois é. Trata-se do documentário francês, Mourir à Madrid (1963) dirigido por Frédéric Rossif: elenco de prestígio, converteu-se em cult — o mais real e dramático enfoque da Guerra Civil Espanhola — guerra que dividiria o Ocidente e enlutaria centenas de famílias.1
Entre seus heróis, André Malraux, escritor francês, autor de A condição humana (La condition humaine, 1933), sobreviveria aos raids aéreos e aos combates no front: não só lutou e sobreviveu em Madri, como participou da resistência a Franco, morrendo, de morte morrida, em 1976.
De seu engajamento politico dariam testemunho o romance A esperança (L'Espoir, 1937) e Serra de Teruel (Sierra de Teruel,1945). No desempenho das funções de Ministro da Cultura (1958/1969, gov. De Gaulle), realizaria o inadmissível: o resgate, para o presente, da passada grandeza da capital: fez raspar e limpar as fachadas dos grandes monumentos históricos. Paris se réveille
Fundou, ainda, as Casas de Cultura (Maisons de la culture), uma para cada cidade, a fim de permitir o acesso a leitores, estudiosos, artistas e pessoas humildes, de cada município, às grandes obras do espírito. Ao morrer de sua morte, legava ao país, além de vasta bibliografia, obra pública irretocável.
Voltemos à nossa própria casa. 
Se o Rio é o que canta o coral ianque, posso dizer-lhes, mineira que sou, estar disposta a morrer no Rio. 
Primeiro, porque esse refrão é pra inglês ouvir. 
Segundo, porque o Rio nunca deixará de ser a mais bela capital do Novo Continente. E disputa, com Paris, tal excelência. Exibe, a olhos de ver, a beleza natural de sua baía e suas montanhas, das alturas dos Dois irmãos, ao alcance da vista, ao Corcovado e ao Cristo. Dali, em glissado vertiginoso, o olhar abarca o areal branco de Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra. Se o belo é a perfeição, os portugueses o descobriram para o mundo e para nós, seus herdeiros. 
Terceiro, não há, no país, população mais cordial, alegre e solidária que a carioca. E, tenho certeza, não só criou como pratica o "jeitinho brasileiro" de ser (que os mineiros me perdoem).
E há mais: conceberam, e realizam, cantando e dançando, a mais bela festa do mundo — hino multifário, como a banda, coral de celebração da Diferença,  do Plural de todos e da Euforia de viver. 
Saibam que não me serve de SOS o refrão made nowhere desse blablalá, nem, tampouco, o aviso das placas que se leem nas passagens de nível: OLHE  PARE  SIGA.
Depois de ver e admirar nossa baía,  extasiado à contemplação da  Guanabara (e registrou-o em livro), Stefan Zweig optaria por  morrer, com sua companheira, longe do Rio: parou, olhou, viu e seguiu para Petrópolis, fugindo de Hitler e do Nazismo...
Também fiz minha opção: não sigo senão a Paris, cidade-luz , por sua beleza arquitetônica e seu patrimônio histórico. Mas estarei de volta à nossa cidade maravilhosa. Sempre. 
Morrer? Quem há-de salvar-se? Se morreremos todos… Quem escolhe a data? Onde?
Os heróis da guerra civil espanhola e da Força Expedicionária Brasileira, composta de voluntários, os nossos “pracinhas”, responderam, ombro a ombro, em forma, à chamada geral. 
A Nossa América pôs-se em marcha, arma em punho, no combate contra o Eixo, em Monte Cassino e Monte  Castelo, nas Batalhas de Cassino e Castello, em defesa da Europa. 
Descansam, agora, em paz: em Pistóia. 
É isso aí.
Maria José de Queiroz
Paris, 23 de dezembro de 2013.
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Frédéric Rossif (1922, Montenegro, antiga Iugoslávia /1990, Paris). Diretor de filmes e documentários para a tela do cinema e televisão, colaborou, frequentemente, com o compositor Maurice Jarre. Depois de perder toda a família durante a Segunda Grande Guerra, emigra à Itália, estuda em Roma e engaja-se, em 1944, na Legião Estrangeira. Já em Paris, em 1945, passa a trabalhar no Club Saint-Germain e dá início à carreira  no cinema. Atua na Cinémathèque Française, organiza o festival de Vanguarda de Antibes (1949/50) e é contratado, em 1952, pela ORTF. Seu filme Mourir à Madrid (script a duas mãos, com a escritora Madeleine Chapsal) recebe o Prêmio Jean Vigo de 1963, tendo sido indicado, pela Academia, para o Prêmio destinado ao Documentário do ano. No cast  de Mourir à Madrid, incluem-se, entre outros, Suzanne Flon, Pierre Vaneck, Jean Vilar, John Gieguld etc. É de 1970, seu único filme não documentário, Aussi loin que l’amour, que teria Salvador Dalí entre seus atores. 

domingo, 22 de dezembro de 2013

A hora de Jorge Luís Borges

Quem nos últimos anos esteve em Paris, em espírito ou em letra, provavelmente ouviu a pergunta insistente e curiosa: leu o último livro de Foucault? E que pensa de Les mots et les choses? Diários, folhetos, semanários, revistas abriram páginas e colunas para discutir e analisar um livro dos mais importantes publicados na França desde o advento do existencialismo. Como se inicia?  Com um texto de Borges. Nos Entretiens de 1966, realizados em Cerisy-la-Salle, para discutir Les Chemins Actuels de la critique, um nome veio constantemente às falas e apartes dos congressistas: o do argentino genial. Claro que também se fez menção a Barthes, a Althusser e a Bachelard... A verdade é que esperamos mais de quatro séculos para que nos aceitassem como latino-americanos à mesa do banquete da cultura e da civilização.

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 58.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Eles queimaram livros

No outono de 1942, a Biblioteca Pública de Nova Iorque organizaria uma exposição dos livros proibidos e queimados na Alemanha. Patrocinada por Eleanor D. Roosevelt, Albert Einstein e mais personalidades políticas, escritores, cientistas e professores, a mostra foi inaugurada com discursos e protestos de repúdio ao auto-de-fé. Autores ingleses e americanos, cujas obras tinham sido proibidas pelos nazistas, deram seu testemunho. Sucedem-se exposições, reuniões, conferências e debates, sempre em torno da fúria incendiária do Terceiro Reich. Bandeiras a meio pau divulgam o luto das bibliotecas e das escolas do país; numa emissão especial, a cargo de Stephen Vincent Benet, a NBC chama a atenção do país para o crime nefando: They burned the books - Eles queimaram livros. Para registro ad perpetuam rei memoriam, editou-se uma brochura, para distribuição nas escolas, sob o título Ten years ago the nazis lighted the way of their own destruction - Há dez anos os nazistas iluminaram o caminho de sua própria destruição.
Mas a comemoração não estaria completa se não se ouvisse a voz do campeão da liberdade - o presidente dos Estados Unidos. Ao falar sobre a data abominável - 10 de maio de 1933 - Roosevelt declara:

"Sabemos todos que os livros se queimam. Mas sabemos ainda mais que os livros não podem ser destruídos pelo fogo. Os homens morrem mas os livros não morrem nunca. Nenhum homem e nenhuma violência podem extinguir a sua lembrança. Nenhum homem e nenhuma violência podem encerrar o pensamento, para sempre, num campo de concentração. Nenhum homem e nenhuma violência podem expulsar do mundo os livros que exprimem o eterno combate da humanidade contra a tirania. Nós sabemos que, nessa guerra, os livros são armas".

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 597.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

No fim do caminho estava Vila Rica

Nossa existência parecia em suspenso. O medo da virada do século não voltara a preocupar minha mãe. As angústias do regresso, intensas no início da viagem, já me haviam abandonado. O movimento da cavalgadura, a presença de gente estranha, a mudança de paisagem, a constante e sucessiva diferença de clima - tudo isso me descansava, fazendo-me esquecer que no fim do caminho estava Vila Rica. Nunca fui tão livre: livre do meu tempo, dos meus pensamentos e das minhas emoções. Abrasada às vezes de calor durante o dia, gelada de frio durante a noite, pouco me importavam as fadigas físicas. Fui quase feliz. Mais que isso: fui feliz.

QUEIROZ, Maria José. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 124.

domingo, 15 de dezembro de 2013

O prazer de comer e o prazer da mesa

O prazer de comer é a sensação atual e direta de uma necessidade que se satisfaz enquanto que o prazer da mesa é a sensação refletida que nasce das diversas circunstâncias de fatos, lugares, coisas de personagens que acompanham  a refeição. O prazer de comer nos é comum com os animais; depende da fome e daquilo que é necessário para satisfazê-la. O prazer da mesa é particular à espécie humana; supõe cuidados prévios na preparação da refeição, na escolha do local e na reunião dos convivas. Enquanto o prazer de comer  exige, senão a fome, pelo menos o apetite, o prazer da mesa é, no mais das vezes, independente tanto de um quanto de outro.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 103

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Por uma carta gastronômica do continente

Esperamos que o bom exemplo de Luís da Câmara Cascudo, ao publicar a História da alimentação no Brasil; de Silva Mello, a Alimentação no Brasil; de Eduardo Frieiro, ao redigir o seu Feijão, angu e couve; de Guilherme Figueiredo, com o seu Comidas, meu santo!, e de Antônio Houaiss, a Magia da cozinha brasileira, frutifique nesta e em outras Américas para que se possa elaborar a Carta Gastronômica do continente. Pois é de supor-se que essa carta fornecerá revelações tão valiosas e tanto mais esclarecedoras sobre os fenômenos culturais americanos quanto a Carta Alcoólica reclamada por Germán Arciniegas. A atender aos dois reclamos, veríamos, bem delineados nas zonas açucareiras, os países da aguardente - o ron e a cachaça -, e, nos países do milho, a ocorrência simultânea da chicha e da tortilla. A presença do mescal e da tequila haveria de colorir o mapa do México, concorrendo com os pratos "ao chocolate", como, por exemplo, o mole poblano. A "branquinha" delimitaria as fronteiras do Brasil, onde pontifica a feijoada negra. O "amargo" - o mate - poria em perigo a hegemonia da vinha nas regiões do Sul, competindo nas grandes carneadas, prolongando o prazer do churrasco e da parrillada. Quando chegarmos a essa perfeição cartográfica, teremos também realizado o propósito estruturalista de Lévy-Strauss escrevendo a história americana dos hábitos à mesa.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p. 34.

sábado, 30 de novembro de 2013

Pentecostes

Tempo de amor
- terceira margem do rio,
tumba e cal de memórias
ancorados -
denuncio.
À doce ilusão
de afeto breve
renuncio.
Em alegre Pentecostes
de liberdade recuperada
anuncio:
os olhos tenho vendados
a Eros e seu prestígio.

Núncio nuncial
incipial
de alma liberada:
a consciência esclarece e ilumina.

Paris, inverno de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 66.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Os castigos

Os castigos propiciaram a Victor Hugo não apenas uma purga, uma catarse; ofereceram-lhe a ocasião de falar no seu próprio nome, sem censura, sem falso recato, sem modéstia. Isento de compromissos políticos, imune à pompa acadêmica, alheio à notoriedade pública e à nomeada pessoal, desvinculado da crença religiosa e da fidelidade aos laços conjugais, indiferente à fama, embora atento à glória, a poesia desata-lhe a língua, ratificando o sursis de todos os gravames a que a sociedade, a República, a igreja, a cidadania e as letras o sujeitavam. Estava livre. De direito e de fato. Para berrar, vociferar e fazer ouvir, nos quatro cantos da terra, o seu clamor oceânico. Não há quem o detenha nem quem o faça calar. Não há nobreza de gênero que o impeça de versar esse ou aquele tema. Invade a literatura, banqueteia-se com todos os gêneros, passa como um vendaval pelo dicionário e depois de inquietar os donos do poder põe em alarme os donos do conhecimento. Não, não era um louco que pensava que fosse Victor Hugo. Aos olhos de Juliette era Deus. E era mesmo: era a poiésis encarnada.

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 262-263.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Projetos

Doutorado:

1) História, memória e cotidiano nas narrativas de Maria José de Queiroz - Resumo: Este projeto objetiva estudar as relações entre a História, a Memória e o cotidiano na obra de Maria José de Queiroz, ancoradas nas relações entre historiografia e literatura na construção dos romances contos e novelas, além de procurar as fronteiras que medeiam a História oficial e as histórias ficcionais. Nesse contexto, pretende-se ainda esclarecer de que forma o texto híbrido que daí resulta constitui-se, também, em uma forma de construção do passado e de sua atualização no presente. Doutoranda: Maria Lúcia Barbosa - Orientadora: Profa. Dra. Constância Duarte - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG - Período: 2014-2018.

Mestrado:

1) As cidades e os mortos: As cidades invisíveis, de Italo Calvino, e Como me contaram: fábulas historiais, de Maria José de Queiroz - Resumo: Este projeto objetiva analisar o caráter duplo do espaço urbano tanto em As cidades invisíveis, de Calvino, quanto em Como me contaram, de Queiroz, tendo em vista a relação entre metrópole e necrópole em ambos os textos. Mestranda: Maria Silvia Duarte Guimarães - Orientadora: Profa. Dra. Lyslei Nascimento - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG. Período: 2016-2019.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

13 de julho de 1791



QUEIROZ, Maria José de. 13 de julho de 1789. In: ______. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 79-81.

sábado, 2 de novembro de 2013

É o homem livre que fala do encarcerado

Van Gogh declarava que o pintor não pinta o que vê mas o que sente. Manifestadamente, não se aplicará também a quem escreve o mesmo aforismo? A tomada de consciência a que nos obrigamos, introduzidos no conhecimento de uma realidade sentida, aspira a instruir-nos sobre uma realidade vista. Acautelemo-nos no entanto: não nos esqueçamos do que a prisão significa na sucessão dos episódios vividos pelo prisioneiro. Na projeção do presente sobre o passado (porque geralmente, é o homem livre que fala do encarcerado), cumpre atentar na convergência das suas visões do mundo, presas a dois tempos, que se integram na reflexão histórica em que o autor força o leitor a situar-se na sua história - ida e vivida.


QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. p. 145. 

domingo, 20 de outubro de 2013

A selva fortalece e consagra amizades

Vinte e três anos de convivência com a floresta, com as cobras, os insetos, as febres, as piranhas e... com a morte. A morte sem disfarce. Quando ataca, ataca sem piedade: de frente. Só o homem, na selva, ataca por trás, de emboscada. Só o homem é hipócrita e mal-intencionado. Dos bichos e das árvores não tenho queixas. Marcaram-me fundo. Mas combatemos combate leal! Hay que temer a los hombres! No entanto quando se tem um amigo... A selva fortalece e consagra as amizades. Ali, sim, é que a fidelidade do amigo se põe à prova. O verniz da civilização não tem razão de ser. Supérfluas nos parecem, e falsas, as fórmulas de polidez, os elogios, os agrados, a solidariedade de fachada. A floresta, testemunha silenciosa, exige atos e não palavras.

QUEIROZ, Maria José de.  Homem de sete partidas. 2. ed.  Rio de Janeiro:  Record,  1999.   p. 86.

sábado, 12 de outubro de 2013

Dorotéia

Noites brancas, sem sossego,
manhã fria de Ouro Preto
Marília, noiva do vento.

O rico vestido bordado,
as liras apaixonadas,
as promessas... o noivo...
Palavras.

Nas ruas, o olhar avesso,
nas rótulas, o vago vozeio,
o riso, a família... Bem feito!

Primeiro a vergonha, o processo,
a dúvida, os versos.
O amor vence tudo,
ainda há esperança...
Dá-se um jeito.
Os dias passando, os meses,
cartas raras, o degredo.
À África? Quem sabe?
Coração maior do que o mundo...
Se amor existe, o mar é pouco...

Dá-se um jeito.
O silêncio.
Silêncio longo de anos,
o casamento, o lar... o dinheiro...
São estes os campos?
Talvez.
Na casa de muitos quartos,
corredores estreitos,
madrugadas prenhes de espantos.
A solidão, fiel conselheira,
desenreda velhos novelos,
corrige passados enganos.
Marília, noiva esquecida,
responde pelo seu nome.
Liras e versos falazes
esquecem-se entre duas fraldas,
no leve embalo do berço
com uma canção de ninar.
São estes os campos?
São estes.
Dorotéia os desencantou.

Belo Horizonte, 1973.


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra, 1974. p. 35-36.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Paixão inútil

Em vão me distraio
no suor e na pena,
no proveito e no ganho,
no esforço diário
da moenda e do pão.
Reinvento leis e parábolas,
prêmio e castigo,
abono a tristeza legítima
(a única, dizem)
de não ser santo.
Em precipitada fuga
aos minerais negros,
ao sol ávido e à herança de sal,
aspiro à graça mística
do saber de salvação.

Finjo aplicar-me
e... quase me convenço:
mato o  tempo,
mastigo ilusões.
Mas sempre me sobram, sempre,
sonhos rebeldes, insônia,
brancas vigílias de sabores ambíguos,
densos perfumes,
rumores súbitos,
rosas rubras.
O corpo alerta
às numéricas palavras
- datas, meses, anos -
ao que falta, ao que resta,
nefastas lembranças,
frustrações...
Ignoro causas,
desconheço pretextos
e me vejo eleito,
em metáfora de viagem
- acaso, necessidade ou maldição - a concluir vidas
em mim prolongadas
sem remissão.
Faço contas,
demoro-me no cálculo:
dinastias milenares
acumulam-se no esquecimento,
sedimentadas de amor e ódio,
desespero e arrogância.
Pesa-me o fardo
de tão longo itinerário
à margem de ataúdes e vultos
que tangem lentas lembranças.
O destino, claro, importa pouco:
nascimento e morte,
começo e fim igualmente se consomem
no cego fulgor da febre e na ciência do pranto.
Pois a mim, afinal, de que me valem
as profecias delirantes,
a família, a honra, o nome,
as dinastias milenares
e sua carga de olvido e de sangue,
se, no assombro de ser,
inutilmente,
lavro o tempo estéril
e semeio meu  legado de cinza e solidões?

Belo Horizonte, abril, 1975.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1982.
p. 81-82. 


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Quanto maior o sofrimento, maior a glória


Grandes igrejas, velas, candelabros, ornamentação luxuosa, missas caras, eis o que se exige dos indígenas para agradar a taita Dios e fazê-lo esquecer as injúrias. Recompensa? O paraíso. Quanto maiores os sofrimentos, maior a glória celeste. Los bienes espirituales son permanentes. Los sufrimientos y la fe, la fe en la Providencia, abren el camino de la felicidad eterna en el seno del Señor... Aconselha-se resignación y espíritu cristiano. Se não receberem recompensa neste mundo, melhor... A doutrina cristã acena-lhes com a felicidade no outro.


QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade de Minas Gerais, 1962. p. 143.

domingo, 29 de setembro de 2013

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Amori

Ao meu corpo entregaste
cansaço de muitas paredes,
vozes de muitas salas.

No teu corpo carregavas
choros, soluços e lágrimas,
recalques de triste infância
e mais injustiças e frases
de tempo vivido e gasto.

A máscara do dia-a-dia
já não te  fazia falta:
deixaste-a nos meus ombros
ao descalçar tua honra,
teu passo firme e válido,
tua invencível vaidade.
No meu corpo repousaste
todo o peso da tua alma.

Encenamos tragédia grega
no disfarce bem logrado
da verdadeira persona
que arrancamos à cara.

Na fogueira de Eros
queimamos nossos fantasmas.
Ó busca insaciada
de unidade lábil
- perdida e recuperada!

Sob o signo do amor,
invocamos Thanatos:
morremos e renascemos,
despertamos justificados.

Humilhados e tímidos,
na nudez do fruto provado,
reassumimos no sono
a face do justo,
a inocência do hábito.

Já altivos deparamos (Ora se...),
nos pés alevantados,
o vértice dos bípedes,
sem asas.

Seres pedestres, verticais,
à frente da oração,
e da criação,
repetimos gestos,
prolongamos a vida,
em fuga interminável.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 32-33.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Geografia final, livro de pedra

"Geografia final, livro de pedra", o Canto Geral ajuda-nos a conhecer o homem em toda a duração do seu inquieto deambular pela terra: "Que era o homem? Em que parte de sua conversa franca / entre os armazéns e os assobios, em qual dos seus movimentos metálicos / vivia o indestrutível, o imperecível, a vida?" Como os grandes aedos, Neruda impõe-se uma missão: contar uma história - "Estou aqui para contar a história." Embora se alterem, no curso da fabulação, o processo e a arte do discurso poético, prevalece o engenho. E é graças a ele que o canto mantém, enervada, a sua intensidade.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p. 151-152.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Exposição "Amor e morte", de Lesle Nascimento, inspirada na obra poética de Maria José de Queiroz



Amor e morte

A exposição Amor e morte, de Lesle Nascimento, surge a partir da leitura do livro de poemas Resgate do real: amor e morte, de Maria José de Queiroz, publicado em 1978.  As imagens capturadas pelo fotografo em Belo Horizonte, Buenos Aires, Lisboa e Jerusalém dialogam com a poesia da escritora que tem, nesse livro, o seu ponto máximo e, como mote, a relação, às vezes imponderável, entre o amor e a morte.  A poesia elegante de Maria José de Queiroz é, assim,  entretecida às líricas imagens de Lesle Nascimento. Ao mesmo tempo em que a escrita sugere o ponto de vista, a imagem insinua sombras, dobras, asas. Nesse sentido, “A morte perdeu seu prestígio para que a vida se celebrasse”. Mas não sem antes constituir-se no “caprichoso risco das estelas e das lápides” em que “o misterioso amor às palavras, a celebração dos mortos” é “refrigério das almas”.

Lesle Nascimento é fotógrafo em Belo Horizonte, onde nasceu em 21 de maio de 1973, e Bacharel em Biblioteconomia pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (lesle@graphe.com.br).

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Nossos mortos


















As mãos se alongam, os braços se abrem:
a paz do féretro une amigos e rivais.
Cúmplices da vida, aliam-se contra a morte.
À ameaça da insônia, em véspera de memória,
o apreço e desprezo do mundo,
apenas murmurados,
ouvem-se em surdo vozeio - acalanto suave.
As palavras saem do silêncio
e a ele regressam
com estranhos primores de orquestra em concerto.
A vida se adivinha no leve ruído dos lábios;
a morte, nas grandes coisas que os gestos insinuam,
lentamente,
profundas, graves e vagas.
Diante do esquife
- barca nova a ser lançada -
a vida ofende, o estrépito desacata.
Em tom menor, a biografia do morto
- âncora sólida -
ainda o detém ao cais, amarra-o à febre
e às intermitências da carne.
Ele e o outro, a quem sucede,
guardam em comum, no corpo insepulto,
o nome, os títulos, a família,
a transparência dos desejos,
o sufrágio dos sonhos e do sono.
Cativo dos vivos, o morto é personagem:
sobrevive em contas e contos,
na prata da casa, na fidelidade do cão,
nos indevassados rincões do êxito,
nos segredos já sem mistério,
na possessão da espera.
A morte é estado;
a vida, ficção miúda, novela episódica,
de complicado enredo.
Todos consideram, como ungidos,
a cabeça disciplinada, as mãos em cruz,
o recato das pernas, o vértice dos pés,
a castidade austera,
a coincidência do tempo e da eternidade.
No rosto do morto, o espelho unânime:
todos os ausentes, todos os desempenhos,
todos os estilos e, em todos, o modelo.
Diante do morto, os vivos exumam os seus mortos:
a doença prolongada, as dores, a lenta agonia
as últimas palavras, o luto, o remorso.
O semblante sereno (parecia dormir!),
a bondade, a mansidão, a modéstia...
Feia pintam a inveja, a cobiça, a ambição da glória.
Comemoram as virtudes que dignificam os que as possuem
e enaltecem os que as celebram.
Sem ofensa aos grandes, sem lástima aos pequenos,
todas as saudades marcam encontro:
velório é ocasião de alívio, de metafísicas alienações
e de desvelo.
Um arrasta o pai; o outro, a mãe;
o terceiro, a filha, o filho;
a viúva, o marido, o amante.
As sombras dos mortos comparecem:
cada qual com o seu dono cada qual com o seu parceiro.
A solidão da morte anônima,
sem fastígio e sem excelência,
publica-se em companhia:
no discurso comovido, quase sussurro,
no elogio das qualidades exemplares,
no olvido das faltas e dos vícios.
A sábia geometria do cemitério
corrige os descaminhos da vida.
Ensina proporção. Medida.
A sua fértil botânica
instrui recente ecologia.
A morte demanda aprendizado:
nunca se morre de uma vez,
num único velório,
nem no próprio enterro.
Escravos de nossas lembranças
os mortos encontram refrigério nas condolências,
nas lágrimas, no luto, nos pêsames.
No fundo de outras pupilas imóveis
são eles ainda, os nossos mortos,
que nos contemplam.

Belo Horizonte, 1974.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 62-65.


sábado, 7 de setembro de 2013

Tempo de amor

O espírito paira sobre as águas
faz-se luz  no universo:
diante de ti, o Gênesis, a terra.
Véspera de milagre,
na surpresa do gesto inédito,
colhe entre os dedos o grito,
encarcera-o na epiderme
até que lento, bem lento,
se desabroche e floresça
em jardim de muitas veredas,
dedilhado à flor da pele.

Um homem, uma mulher:
a nudez edênica de todos os princípios,
o sagrado ritual de todos os começos.
Esplende a carne casta
na apoteose do mistério:
sangue, músculo e nervo.
Rendida ao primeiro olhar
- tímido, furtivo, discreto,
hesita, disfarça, entrega-se
não, não se entrega,
dividida entre o pudor e o desejo.

De todas as vozes,
o eco:
quantos somos? de quantas noites viemos?
De todas as frases,
o sentido denso:
da adolescência guardamos
a angústia, a culpa, o receio.
De todos os ritmos,
a cadência:
cedem os pulsos cerrados,
rompem-se velhas algemas.
Compassos em pausa
sustentam o silêncio:
noite colorida de tons,
acordes, escalas, arpejos.
Alargam-se em fermata
breves, semibreves enleios.

Nosso tardio evangelho
reescrevemos a medo:
reiventamos o mundo,
a carne faz-se verbo.
Primeira página, Livro 1:
é tempo de amor.
Dissipa-se a solidão das trevas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 15-16.

domingo, 1 de setembro de 2013

A língua absolvida, de Elias Canetti


A grande repercussão de A língua absolvida. História de uma juventude, a que se seguiram Uma tocha em meu ouvido e Jogos de olhar, conferiu-lhe [Elias Canetti] larga notoriedade na Europa, granjeando-lhe fama internacional. Fama tardia, já nos anos maduros. Ainda assim exaltante. Especialmente após o encalhe de Auto-de-fé e a pálida repercussão de Massa e poder. Donde procede tão súbito entusiasmo? Não mudaram o autor nem o público; mudou o gênero. E nenhum outro, senão as memórias, parece menos rígido nem mais propício à defesa de princípios, à exposição das ideias nem, tampouco, à livre expressão dos sentimentos e das emoções. Porque nele se confundem, dentro dos limites do testemunho pessoal, o romance de figura, o romance de evolução e o romance de formação. Sob os auspícios do pacto autobiográfico exprimem-se, ao abrigo da censura, de toda censura, aptidões, gostos, preferências, ideologias e conhecimentos. O leitor refaz, no curso de uma vida, todo o itinerário percorrido pelo autor. Assimilam-se ao discurso, de palpitante vivacidade, o auto-retrato, o diário, o mergulho introspectivo, tudo isso permeado à crônica do momento político e social, na sua infinita variedade humana. E o que mais interessa: o estilo coloquial, do Eu com o seu duplo, traz o leitor para junto do sujeito.

QUEIROZ, Maria José de. Tempo histórico. Tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.113.
Refrações no tempo