quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Quanto maior o sofrimento, maior a glória


Grandes igrejas, velas, candelabros, ornamentação luxuosa, missas caras, eis o que se exige dos indígenas para agradar a taita Dios e fazê-lo esquecer as injúrias. Recompensa? O paraíso. Quanto maiores os sofrimentos, maior a glória celeste. Los bienes espirituales son permanentes. Los sufrimientos y la fe, la fe en la Providencia, abren el camino de la felicidad eterna en el seno del Señor... Aconselha-se resignación y espíritu cristiano. Se não receberem recompensa neste mundo, melhor... A doutrina cristã acena-lhes com a felicidade no outro.


QUEIROZ, Maria José de. Do indianismo ao indigenismo nas letras hispano-americanas. Belo Horizonte: Imprensa da Universidade de Minas Gerais, 1962. p. 143.

domingo, 29 de setembro de 2013

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Amori

Ao meu corpo entregaste
cansaço de muitas paredes,
vozes de muitas salas.

No teu corpo carregavas
choros, soluços e lágrimas,
recalques de triste infância
e mais injustiças e frases
de tempo vivido e gasto.

A máscara do dia-a-dia
já não te  fazia falta:
deixaste-a nos meus ombros
ao descalçar tua honra,
teu passo firme e válido,
tua invencível vaidade.
No meu corpo repousaste
todo o peso da tua alma.

Encenamos tragédia grega
no disfarce bem logrado
da verdadeira persona
que arrancamos à cara.

Na fogueira de Eros
queimamos nossos fantasmas.
Ó busca insaciada
de unidade lábil
- perdida e recuperada!

Sob o signo do amor,
invocamos Thanatos:
morremos e renascemos,
despertamos justificados.

Humilhados e tímidos,
na nudez do fruto provado,
reassumimos no sono
a face do justo,
a inocência do hábito.

Já altivos deparamos (Ora se...),
nos pés alevantados,
o vértice dos bípedes,
sem asas.

Seres pedestres, verticais,
à frente da oração,
e da criação,
repetimos gestos,
prolongamos a vida,
em fuga interminável.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 32-33.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Geografia final, livro de pedra

"Geografia final, livro de pedra", o Canto Geral ajuda-nos a conhecer o homem em toda a duração do seu inquieto deambular pela terra: "Que era o homem? Em que parte de sua conversa franca / entre os armazéns e os assobios, em qual dos seus movimentos metálicos / vivia o indestrutível, o imperecível, a vida?" Como os grandes aedos, Neruda impõe-se uma missão: contar uma história - "Estou aqui para contar a história." Embora se alterem, no curso da fabulação, o processo e a arte do discurso poético, prevalece o engenho. E é graças a ele que o canto mantém, enervada, a sua intensidade.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p. 151-152.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Exposição "Amor e morte", de Lesle Nascimento, inspirada na obra poética de Maria José de Queiroz



Amor e morte

A exposição Amor e morte, de Lesle Nascimento, surge a partir da leitura do livro de poemas Resgate do real: amor e morte, de Maria José de Queiroz, publicado em 1978.  As imagens capturadas pelo fotografo em Belo Horizonte, Buenos Aires, Lisboa e Jerusalém dialogam com a poesia da escritora que tem, nesse livro, o seu ponto máximo e, como mote, a relação, às vezes imponderável, entre o amor e a morte.  A poesia elegante de Maria José de Queiroz é, assim,  entretecida às líricas imagens de Lesle Nascimento. Ao mesmo tempo em que a escrita sugere o ponto de vista, a imagem insinua sombras, dobras, asas. Nesse sentido, “A morte perdeu seu prestígio para que a vida se celebrasse”. Mas não sem antes constituir-se no “caprichoso risco das estelas e das lápides” em que “o misterioso amor às palavras, a celebração dos mortos” é “refrigério das almas”.

Lesle Nascimento é fotógrafo em Belo Horizonte, onde nasceu em 21 de maio de 1973, e Bacharel em Biblioteconomia pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (lesle@graphe.com.br).

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Nossos mortos


















As mãos se alongam, os braços se abrem:
a paz do féretro une amigos e rivais.
Cúmplices da vida, aliam-se contra a morte.
À ameaça da insônia, em véspera de memória,
o apreço e desprezo do mundo,
apenas murmurados,
ouvem-se em surdo vozeio - acalanto suave.
As palavras saem do silêncio
e a ele regressam
com estranhos primores de orquestra em concerto.
A vida se adivinha no leve ruído dos lábios;
a morte, nas grandes coisas que os gestos insinuam,
lentamente,
profundas, graves e vagas.
Diante do esquife
- barca nova a ser lançada -
a vida ofende, o estrépito desacata.
Em tom menor, a biografia do morto
- âncora sólida -
ainda o detém ao cais, amarra-o à febre
e às intermitências da carne.
Ele e o outro, a quem sucede,
guardam em comum, no corpo insepulto,
o nome, os títulos, a família,
a transparência dos desejos,
o sufrágio dos sonhos e do sono.
Cativo dos vivos, o morto é personagem:
sobrevive em contas e contos,
na prata da casa, na fidelidade do cão,
nos indevassados rincões do êxito,
nos segredos já sem mistério,
na possessão da espera.
A morte é estado;
a vida, ficção miúda, novela episódica,
de complicado enredo.
Todos consideram, como ungidos,
a cabeça disciplinada, as mãos em cruz,
o recato das pernas, o vértice dos pés,
a castidade austera,
a coincidência do tempo e da eternidade.
No rosto do morto, o espelho unânime:
todos os ausentes, todos os desempenhos,
todos os estilos e, em todos, o modelo.
Diante do morto, os vivos exumam os seus mortos:
a doença prolongada, as dores, a lenta agonia
as últimas palavras, o luto, o remorso.
O semblante sereno (parecia dormir!),
a bondade, a mansidão, a modéstia...
Feia pintam a inveja, a cobiça, a ambição da glória.
Comemoram as virtudes que dignificam os que as possuem
e enaltecem os que as celebram.
Sem ofensa aos grandes, sem lástima aos pequenos,
todas as saudades marcam encontro:
velório é ocasião de alívio, de metafísicas alienações
e de desvelo.
Um arrasta o pai; o outro, a mãe;
o terceiro, a filha, o filho;
a viúva, o marido, o amante.
As sombras dos mortos comparecem:
cada qual com o seu dono cada qual com o seu parceiro.
A solidão da morte anônima,
sem fastígio e sem excelência,
publica-se em companhia:
no discurso comovido, quase sussurro,
no elogio das qualidades exemplares,
no olvido das faltas e dos vícios.
A sábia geometria do cemitério
corrige os descaminhos da vida.
Ensina proporção. Medida.
A sua fértil botânica
instrui recente ecologia.
A morte demanda aprendizado:
nunca se morre de uma vez,
num único velório,
nem no próprio enterro.
Escravos de nossas lembranças
os mortos encontram refrigério nas condolências,
nas lágrimas, no luto, nos pêsames.
No fundo de outras pupilas imóveis
são eles ainda, os nossos mortos,
que nos contemplam.

Belo Horizonte, 1974.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978.
p. 62-65.


sábado, 7 de setembro de 2013

Tempo de amor

O espírito paira sobre as águas
faz-se luz  no universo:
diante de ti, o Gênesis, a terra.
Véspera de milagre,
na surpresa do gesto inédito,
colhe entre os dedos o grito,
encarcera-o na epiderme
até que lento, bem lento,
se desabroche e floresça
em jardim de muitas veredas,
dedilhado à flor da pele.

Um homem, uma mulher:
a nudez edênica de todos os princípios,
o sagrado ritual de todos os começos.
Esplende a carne casta
na apoteose do mistério:
sangue, músculo e nervo.
Rendida ao primeiro olhar
- tímido, furtivo, discreto,
hesita, disfarça, entrega-se
não, não se entrega,
dividida entre o pudor e o desejo.

De todas as vozes,
o eco:
quantos somos? de quantas noites viemos?
De todas as frases,
o sentido denso:
da adolescência guardamos
a angústia, a culpa, o receio.
De todos os ritmos,
a cadência:
cedem os pulsos cerrados,
rompem-se velhas algemas.
Compassos em pausa
sustentam o silêncio:
noite colorida de tons,
acordes, escalas, arpejos.
Alargam-se em fermata
breves, semibreves enleios.

Nosso tardio evangelho
reescrevemos a medo:
reiventamos o mundo,
a carne faz-se verbo.
Primeira página, Livro 1:
é tempo de amor.
Dissipa-se a solidão das trevas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 15-16.

domingo, 1 de setembro de 2013

A língua absolvida, de Elias Canetti


A grande repercussão de A língua absolvida. História de uma juventude, a que se seguiram Uma tocha em meu ouvido e Jogos de olhar, conferiu-lhe [Elias Canetti] larga notoriedade na Europa, granjeando-lhe fama internacional. Fama tardia, já nos anos maduros. Ainda assim exaltante. Especialmente após o encalhe de Auto-de-fé e a pálida repercussão de Massa e poder. Donde procede tão súbito entusiasmo? Não mudaram o autor nem o público; mudou o gênero. E nenhum outro, senão as memórias, parece menos rígido nem mais propício à defesa de princípios, à exposição das ideias nem, tampouco, à livre expressão dos sentimentos e das emoções. Porque nele se confundem, dentro dos limites do testemunho pessoal, o romance de figura, o romance de evolução e o romance de formação. Sob os auspícios do pacto autobiográfico exprimem-se, ao abrigo da censura, de toda censura, aptidões, gostos, preferências, ideologias e conhecimentos. O leitor refaz, no curso de uma vida, todo o itinerário percorrido pelo autor. Assimilam-se ao discurso, de palpitante vivacidade, o auto-retrato, o diário, o mergulho introspectivo, tudo isso permeado à crônica do momento político e social, na sua infinita variedade humana. E o que mais interessa: o estilo coloquial, do Eu com o seu duplo, traz o leitor para junto do sujeito.

QUEIROZ, Maria José de. Tempo histórico. Tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.113.
Refrações no tempo

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A obsessão do espelho

A obsessão do espelho nas mais variadas implicações com o mito de Narciso constantemente se reelabora. Na busca incessante de si  mesmo, da sua verdade, o homem descobre na imagem refletida a prova física da existência. Só ela lhe oferece o sujeito como objeto, guardada a sua identidade e semelhança. Sucede às vezes apoderar-se o espelho da imagem-objeto para transformá-la em sujeito aos olhos do original. A partir de então, o sujeito só se encontra na contemplação da figura aprisionada pelo cristal. É ela que o assegura da sua existência como personagem. É ela que lhe sugere gestos e posturas. A fábula da rainha vaidosa endossa não só o comportamento da coquette, que se mira a cada instante no espelhinho da bolsa, como a conduta do homem cuja maior preocupação é a figura que faz  aos olhos (espelho) dos outros. Transfere-se, portanto, ao espelho a essencialidade humana.

QUEIROZ, Maria José de. Cesar Vallejo: ser e existência. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 87.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

VI Seminário de Pesquisa de Literatura Brasileira - Faculdade de Letras da UFMG, 29 de agosto de 2013


A literatura hispano-americana

Quando se considera a literatura hispano-americana com o intuito de traçar-lhe a perspectiva, entra pelos olhos a visão caleidoscópica deste mundo novo, de tão complexa formação. Como reduzi-la à unidade se, das pirâmides astecas às solidões da Patagônia, tudo é Hispano-América? Haverá também para tão larga faixa de terra, onde "ainda se reza a Jesus Cristo e se fala espanhol", a possibilidade de síntese literária? Ou seríamos obrigados a renunciar à tentação da singularidade para adotar o conceito plural de literaturas hispano-americanas? Dessarte teríamos no plano da política como no das letras a colcha de retalhos, "América hecha añicos" - a que se referia com tristeza o libertador Bolívar. Literatura argentina uruguaia, paraguaia, venezuelana, portorriquense, chilena, guatemalteca... "qué sé yo?".

QUEIROZ, Maria José de. Presença da literatura hispano-americana. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1971. p. 22-23.

sábado, 10 de agosto de 2013

A tragédia original do espírito e da alma

Considera-se hoje Dostoievski como o precursor dos estudos psicanalíticos.  Ninguém, como ele, esquadrinhou com maior perspicácia os subterrâneos da alma humana. "Com prazer sádico" - insinuaram alguns - "ele desceu às regiões tenebrosas, caóticas e mórbidas"(1). Houve quem contasse mais de quarenta diferentes tipos de anormais presentes na sua obra. E houve também quem o acusasse de pintar o mundo com um vasto asilo de alienados. O certo é que a preocupação do escritor russo não eram diagnósticos patológicos nem a anamnese clínica: interessavam-lhe as personagens como "casos psicológicos", "do mesmo modo que, nas suas descrições do crime, trata, antes de tudo, de revelar a tragédia original do espírito e da alma. A Dostoievski a perturbação mental do espírito e da alma. A Dostoievski a perturbação mental não sugere o problema médico da cura do cérebro de uma alma sofrida. A sua compreensão não procede de observação objetiva, vem-lhe da experiência e do sofrimento pessoais."(2)

(1) FÜLOP-MILLER, Ren. Dostoievski, précursor de la psychanalyse. In: Dostoievski: l'intitif, le croyant, le poète. Paris: Éditions Albin-Michel, 1954. p. 145.

(2)  FÜLOP-MILLER, 1954, p. 155.

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990. p. 86.



terça-feira, 16 de julho de 2013

O tom confessional na poesia de Juana de Ibarbourou

O tom confessional na poesia de Juana de Ibarbourou, declaradamente autobiográfico, assim o cremos, facilita-nos a tarefa, já de si tão complexa. Sua riqueza em aspectos humanos, geográficos e temporais permite-nos avaliar a importância da intromissão da vivência no domínio da experiência poética. Antes de nada, o nascimento em Melo, "villa extendida sobre una llanura junto al río bordeado de cañas tacuaras", explica o amor à natureza agreste, a intimidade com o luar, o conhecimento das coisas que fazem a alegria da vida do interior.



QUEIROZ, Maria José de. A poesia de Juana de Ibarbourou. Belo Horizonte: Imprensa da UFMG, 1961. p. 64-65.

domingo, 14 de julho de 2013

A cidade prometida

Nem barco nem vela,
nem rio nem mar:
caminhos de ir
e nunca voltar.
Exílio definitivo
de golfos e enseadas
no voluntário olvido
de espumas e ressacas.
Entre montanha e serra,
minério e granito,
terra a conquistar,
terra a povoar,
partida sem retorno,
adeus sem suspiro.
De Vila Rica,
a lembrança e o mito:
ilusões de riqueza,
a Derrama, a Inconfidência,
imagens, capelas e liras.
O morro da Queimada, Tiradentes,
Aleijadinho, Antônio Dias,
minas exaustas, a portada de São Francisco.
A coragem na mochila,
nos pés, a determinação do caminho.
Cabeça erguida, braço firme,
nervo pronto ao desafio.
O sertão se rende ao mais forte,
a cidade, ao que nela habita.
Uma, duas, muitas cores,
o crepúsculo se ilumina:
na montanha, a sua moldura,
no céu, tela de raro tecido.
O viajante deslumbrado
desenha janelas na alma
para debruçar nostalgias
do Itacolomi entre névoas
em tarde de garoa e frio.
Esquece a dureza do solo,
planta casas, colhe ruas
e suas noites insones
florescem em avenidas.
A capital desperta
no fundo das suas pupilas
e um milhão de habitantes
descansa entre sono e vigília.
Fantasma dos mais queridos,
visão edênica, Utopia,
a cidade se insinua
entre nuvens e bruma,
luminosa,
no infinito.
Fresca de flores, cimento, pólen,
cinge-o com carinho.
No seu pulso verde, elétrico,
sangue de muitas raças,
devoção a vário rito.
No seu corpo delgado,
calor e abrigo.

Mas na manhã clara, serena,
o sonho se dissipa.
A alma, leve, se agita
a recordar - fantasia! - 
grata visão noturna
de espírito ocioso, 
presa fácil do delírio.

Belo Horizonte, 12 de dezembro de 1971, aniversário da cidade.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 145-149.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A letra julga e defende, condena e liberta

O uso e o culto da letra instauraram a reestruturação do sensível ao introduzir na interpretação dos fatos a consciência da causalidade. Não basta, não mais, o conhecimento do Direito, escrito no coração dos homens: é preciso ler o Decálogo, conhecer os institutos jurídicos que emanam das leis e da Constituição, os Códigos que regem o Estado, todos eles indispensáveis à vida social. A letra julga e defende, condena e liberta. E porque obriga à concentração da percepção, supõe a vigilância permanente da inteligência. A contínua associação do significante ao significado escraviza-nos a signos e conceitos enquanto a servidão à página escrita nos submete à tirania de um dos sentidos: a visão. Aplicada à apreensão do espaço e dos objetos, ela discrimina a forma, investiga o explícito. Isto é, o visível. Interessam-lhe, portanto, as evidências - dimensões, superfícies, volumes - que a sujeitam à conformidade e à lógica.


QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997. p 65-66.


domingo, 7 de julho de 2013

A arte de bicicletar

Em detrimento do exercício e prática do esporte, o que importa a Georges Pérec e a Fernando Arrabal, escritores de vanguarda, é o que tema sugere. A bicicleta é pretexto para fantasias e teses metafísicas, objeto ao qual subtraem definições e conceitos sobre o ser. Membro genial do grupo Oulipo, e cuja memória se cultura hoje com especial veneração, Georges Perec publicou, em 1996, um livro curioso Quel petit vélo à guidon au fond de la cour? - Qual a bicicletazinha de guidom no fundo do pátio? Do espanhol marroquino, Arrabal, exilado na França, encenou-se em Paris, em 1967, a peça de um ato La bicyclette du condamné - A bicicleta do condenado (1958). O enredo, como tudo quanto escreve Arrabal, destrinça o absurdo, mostrando o conflito do caos e da liberdade. Para trazê-lo à consciência do público, expõe o drama de dois protagonistas (representados na peça por um ator): um homem condenado a andar de bicicleta e um pianista condenado a tocar piano. A bicicleta e o piano são a pedra de Sísifo de suas vidas. Chegados a esse ponto, em que tão inocente companheira de lazer se converte em instrumento de punição, será de bom aviso abreviar o nosso périplo.


QUEIROZ, Maria José de. Refrações no tempo: tempo histórico/tempo literário. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 103-104.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Journée d’étude du CREPAL – Sorbonne Nouvelle Paris 3


« Raconter la vie. Textualités »
28 juin 2013 de 9h à 19h

Centre Censier, 13 rue de Santeuil 75015 Paris
Bâtiment D (dans la cour d’entrée) salle12
16h30min 



V Congresso Mulheres em Letras - Faculdade de Letras / UFMG

V Colóquio Mulheres em Letras
Escrituras, valores, sentidos

Faculdade de Letras da UFMG

 18 a 20 de abril de 2013



sábado, 15 de junho de 2013

Amorem


"En mi cuerpo tu buscas el monte,
a su sol enterrado en el bosque.
En tu cuerpo yo busco la barca
en mitad de la noche perdida."

(Octavio Paz)








Ingênuo alumbramento
dos sentidos acordados
na exaltação do afeto
ainda ontem refutado.

Nos ombros sacrificamos
orgulho de muitas casas,
preconceitos alarmados
de rochas e duas aras.

O tempo,
entre lábio e lábio
suspenso,
esquece horas,
relógio,
cinza, angústias e mágoa.

Em abraço confundidos,
na ávida procura de nós mesmos,
olhos nos olhos nos miramos,
olhos nos olhos nos perdemos.

Em delírio prosseguindo
a nossas bocas sedentas
chegam carícias sem verbo,
falamo-nos em silêncio,
nos ouvimos a tato e medo.
Na voz febril do gesto,
ora sôfrego, ora manso,
percorremos o alfabeto.

Quando a sede se aplaca,
a ternura sobre às asas
e em espirais adeja,
ambiguamente casta.

Como de Formentor
a repetida vaga,
a vertigem dos sentidos
de novo nos arrebata.
Eis-nos embarcados,
e náufragos,
ainda uma vez,
e mais, e mais, 
entre pedra e água.

Quando tuas mãos recuperam
seu antigo exercício
tudo volta ao que fora:
cabeça, tronco e membros,
a cada qual seu desempenho.

Olhos nos olhos nos buscamos
olhos nos olhos,
no olvido da ampulheta 
e dos ponteiros.

Na tentação de existir,
Eu e Outro,
tu e eu.
corpo e alma,
corpo e alma entrelaçados,
afogamos dissabores
de rocha, âncoras e aras.

Entre luz e sombra
de outonal brumário,
mar alto, terra ao longe,
longe praia,
inventamos nosso porto
na encruzilhada das águas.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 29-31.

Amoris


O meu melhor vestido
ou
revisão da fábula

Nas tuas mãos, o meu melhor vestido:
trama inconsútil, gesto leve,
carícia e ritmo.

Lento, lento urdes a tela:
malha, ponto e linha,
fiel ao risco.

Dispenso organza e brocado,
de seda vulgar me dispo.
Na nudez encontras matéria
para mais belos motivos.

Em noite de amor e arte
celebram-se os sentidos:
ramagens astros e nuvens,
asas delgadas de pássaros
golfos e mais enseadas

O fio ao romper-se te obriga
ao enredo de novos laços:
os lábios correm em auxílio
dos dedos menos hábeis.

Plenilúnios, lagunas e lagos,
torrentes, fontes, cascatas
disfarças com breves toques,
unindo o esquivo ao raro.

A trama se complica
no requinte do tecido,
na sutileza do fio,
imponderável,
diáfano.

À fugaz beleza cálida
da teia secreta, apertada,
juntas suspiros e ais.

Toda inteira recoberta
de renda franjas e vozes,
rivalizo à madrugada,
com o claro vestido de névoa
estendido à flor do mar.

À inocente denúncia
à nudez falaciosa
(para a revisão da fábula)
em outros termos se declara:

o rico vestido de ouro,
de pedras e joias caras
- invenção de quem o talha,
veste-o quem nele acredita,
em dia de festa pública
ou em noite de amor e gala.


QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 27-28.

Amor

"... para salvarme y salvarte, con amor te deletreo." 
(Gabriel Celaya)

Palavra a declinar-se
em cinco casos
e uma invocação: 
amor, amoris.
Nome de vasto império,
lei, culto, servidão.
Nos cinco sentidos
a sua garra.
O mistério se faz carne,
o corpo aprende a ser corpo
habitado:
amorosa iniciação.
Do nominativo ao ablativo
a carne se entende e se explica,
cumprindo-se em si mesma
em cópula fabular
de clara dicção.

Amor
, amoris:
em genitivo de posse
em dativo de entrega,
ou de ablação,
nome, nome, sempre nome,
de humana declinação.
Singular ou plural,
étimo e desinência,
com residência na terra
– sangue, instinto, vocação.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra 1978. p. 23-24.

terça-feira, 11 de junho de 2013

O amante e a amada


O amante e a amada:
o céu, os astros,
as grandes águas.
Arquipélagos e promontórios,
barcas a sabor,
mar alto.

L'heure exquise:
horizonte sem estradas.
A emoção da viagem
no ritmo delirante das vagas.
Abismos insondáveis,
nenúfares sombrios,
opalescência de nácares.

O amante e a amada:
prodígio multiplicado.
O sal do tempo
na pele ácida.
Estrelas de nardo e espuma
nas sílabas sincopadas.
Os olhos de todas as ilhas
vendados pelos penhascos,
os ouvidos invisíveis da noite
surdos ao grito e ao milagre.

O amante e a amada:
a hora redonda, estática.
Na argila suave,
o criador, a criatura, o incriado.
A imagem e os seus espelhos,
a alma e os seus fantasmas.
A pedra informe, áspera:
estátua viva. Parla!

O amante e a amada:
nas vacilações da luz,
fulgor de muitas espadas;
nas sombras galopantes,
lestos corcéis alados.
Entre o amanhecer e o crepúsculo
o tempo cala a eternidade.

O amante. A amada.
Terra próxima:
no azul largo, o horizonte habitado.
As gaivotas ferem o céu:
himeneu ao romper da aurora.

Firme na sua duração,
sucessivo, tenaz,
o dia invade as ruas,
o sol desperta a cidade,
indiferente ao gravitar sem medida,
alheio à eternidade fugaz.
O pêndulo em equilíbrio,
os ponteiros dissipam as horas.

Ele. Ela. O relógio.
Passos e pés escravos.
O pão. O salário.
O amante e a amada
sonham noite interminável.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 17-19.