domingo, 6 de setembro de 2015

As coisas têm alma

Para Zibuntas Miksys
As coisas têm alma.
Deveras.
É preciso no entanto desvelar-lhes o segredo:
expô-lo à luz, ao sol, às estrelas,
despertá-lo com a força do grito,
ou com a dureza do diamante ímpio,
trazê-lo à vida, ao rumor, ao ritmo,
à pátria da dor, do relâmpago e do reflexo.

Do subentendido à evidência
emissárias de lembranças,
as coisas falam.
Ilhas de luz e sombra,
pássaros petrificados,
pérolas de profundo sigilo,
sua voz cresce,
e sobe,
cálida, vibrátil.
Numa linguagem secreta,
ali, onde desemboca o silêncio,
o mistério se manifesta:
flecha disparada, súbito aroma,
que o tempo devora
e a quietude consome.

As coisas têm alma:
múltipla, compósita, diversa.
E sua ideia em nós assiste,
queda.
Submissas ao cristal, ao mármore, à tela
- nostalgia de perfeição, chama divina,
simples gesto -
ninguém lhe pode dar senão o que tem,
em si,
benesse ou pobreza.

As coisas têm alma.
É preciso violar-lhes o segredo.

Paris, inverno de 1977.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 17-18.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A vida inventa

















A Riobaldo


A vida inventa, é certo.
E a estória inventada vale mais, muito mais,
que o caso acontecido
contra vontade nossa e projeto.

Amores imaginados,
em mil e uma noite vividos,
com Sherazade ou Boccaccio,
trouxeram-me alegria maior
que o afeto rotineiro,
sujeito a leis, credo e rito.

Em prosa e rima,
a vida que não tive,
no estilo e modo meu,
apetecido.

Na página escrita
- espelho e abrigo -,
o mais belo dia,
de passado ideal
ou futuro sonhado,
inacontecido.

Sei bem:
intrigo,
entreteço enredos
de longos, sutilíssimos fios.
Na cena imaginária
me aposento:
vivo e desvivo utopias.
Rio baldo, baldo rio,
que da nascente à foz
de palavras se alimenta
e ao largo mar aporta
verbo de emoção contida,
sentimento de signos vestido,
lenda, fábula, mito.
Mas tudo real, pensado.
Mais real que o caso acontecido
- acidente fortuito, inesperado,
a que chamamos destino, Providência,
sorte, sina, fatal designo.

Paris, inverno de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 83-84.


sábado, 22 de agosto de 2015

Além da porta e do trinco

Além da porta e do trinco,
da chave e do ferrolho,
da parede e do muro,
além da última montanha,
da névoa e da bruma,
do arco-íris e do fumo,
além da máscara e do riso,
do gesto e da figura,
do perfil e do vulto,
além da voz e do grito,
do canto, da fala e do sussurro,
além de ti, de mim,
desse murmúrio e do olvido,
- o inferno ou o paraíso?
Belo Horizonte, 1972.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 87.

Que lhe posso eu dizer
















Que lhe posso eu dizer
que já não lhe tenha dito
em dicção de claro timbre
e verbo de grave sentido?

Consulte a memória
- sua fiel ancila.
Recupere vida e tempo,
convença-se:
eis-me a seu lado, cativa.
Milagre de eternidade,
permeada a seu ser,
estrela e mito.

Mas, se insiste,
confesso-lhe,
repito:
padeço funda saudade,
a lembrança me martiriza,
povoam-me incertezas,
dissipo-me entre amigos.

É tarde.
Escute-me:
de minha palavra
mal se ouve o eco
e a saudade já se faz grito...

Paris, 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 72-73.

domingo, 16 de agosto de 2015

Receita para fabricar outono


"Tudo (entre um dia e o outro dia) por um velho capricho do relógio e, 
outro, da geografia".

(Cassiano Ricardo)

Paris: as duas margens do Sena sugerem rivalidades.
O Pont Neuf as elimina em mágica transcendência.

O mito passeia disponibilidade vaga
entre as duas margens:
éramos dois.

O tempo e seu ponteiros
mediram nosso verbo de dilatada ressonância. 

De passadas primaveras, ecos apagados,
vestígios dispersos de caminhos percorridos,
dualmente.
Hoje, o sursis.
Amanhã, o inverno monologal.

Paris, outono, 1969.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 13.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Não há dor que resista a essa beleza

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina -, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
- Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 161.

domingo, 19 de julho de 2015

Diante do fruto















A vida a que fujo,
obstinadamente,
ei-la nos teus olhos,
insistente.

O corpo que ignoro,
indiferente,
ei-lo no teu desejo,
sarça mordente.

É tempo de tentação.
Salve-nos a serpente.

Belo Horizonte, fevereiro, 1974.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 68.

domingo, 7 de junho de 2015

Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz. Topbooks, 1997.


Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz. Círculo do Livro, 1996.


Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz. Editora Marco Zero, 1987.


Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz, novela das 23h, na Globo.

Junta-se aos bons

Márcia Prates fará sua estreia como autora de novelas em 2016, na faixa das 23h. Sua trama, de época, será uma ficção inspirada em Joaquina, filha de Tiradentes [de Maria José de Queiroz]. Vinícius Coimbra dirigirá a história, já aprovada pelo fórum de dramaturgia. Andreia Horta está reservada para o papel da protagonista.

Fonte: http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/coluna/noticia/2015/05/em-viagem-paris-marieta-severo-assumiu-camera-e-fez-imagens-para-arte-do-artista-de-aderbal-freire-filho.html