As coisas têm alma.
Deveras.
É preciso no entanto desvelar-lhes o segredo:
expô-lo à luz, ao sol, às estrelas,
despertá-lo com a força do grito,
ou com a dureza do diamante ímpio,
trazê-lo à vida, ao rumor, ao ritmo,
à pátria da dor, do relâmpago e do reflexo.
Do subentendido à evidência
emissárias de lembranças,
as coisas falam.
Ilhas de luz e sombra,
pássaros petrificados,
pérolas de profundo sigilo,
sua voz cresce,
e sobe,
cálida, vibrátil.
Numa linguagem secreta,
ali, onde desemboca o silêncio,
o mistério se manifesta:
flecha disparada, súbito aroma,
que o tempo devora
e a quietude consome.
As coisas têm alma:
múltipla, compósita, diversa.
E sua ideia em nós assiste,
queda.
Submissas ao cristal, ao mármore, à tela
- nostalgia de perfeição, chama divina,
simples gesto -
ninguém lhe pode dar senão o que tem,
em si,
benesse ou pobreza.
As coisas têm alma.
É preciso violar-lhes o segredo.
Paris, inverno de 1977.
QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 17-18.
domingo, 6 de setembro de 2015
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
A vida inventa
A vida inventa, é certo.
E a estória inventada vale mais, muito mais,
que o caso acontecido
contra vontade nossa e projeto.
Amores imaginados,
em mil e uma noite vividos,
com Sherazade ou Boccaccio,
trouxeram-me alegria maior
que o afeto rotineiro,
sujeito a leis, credo e rito.
Em prosa e rima,
a vida que não tive,
no estilo e modo meu,
apetecido.
Na página escrita
- espelho e abrigo -,
o mais belo dia,
de passado ideal
ou futuro sonhado,
inacontecido.
Sei bem:
intrigo,
entreteço enredos
de longos, sutilíssimos fios.
Na cena imaginária
me aposento:
vivo e desvivo utopias.
Rio baldo, baldo rio,
que da nascente à foz
de palavras se alimenta
e ao largo mar aporta
verbo de emoção contida,
sentimento de signos vestido,
lenda, fábula, mito.
Mas tudo real, pensado.
Mais real que o caso acontecido
- acidente fortuito, inesperado,
a que chamamos destino, Providência,
sorte, sina, fatal designo.
Paris, inverno de 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 83-84.
sábado, 22 de agosto de 2015
Além da porta e do trinco
Além da porta e do trinco,
da chave e do ferrolho,
da parede e do muro,
além da última montanha,
da névoa e da bruma,
do arco-íris e do fumo,
além da máscara e do riso,
do gesto e da figura,
do perfil e do vulto,
além da voz e do grito,
do canto, da fala e do sussurro,
além de ti, de mim,
desse murmúrio e do olvido,
- o inferno ou o paraíso?
Belo Horizonte, 1972.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 87.
da chave e do ferrolho,
da parede e do muro,
além da última montanha,
da névoa e da bruma,
do arco-íris e do fumo,
além da máscara e do riso,
do gesto e da figura,
do perfil e do vulto,
além da voz e do grito,
do canto, da fala e do sussurro,
além de ti, de mim,
desse murmúrio e do olvido,
- o inferno ou o paraíso?
Belo Horizonte, 1972.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 87.
Que lhe posso eu dizer
Que lhe posso eu dizer
que já não lhe tenha dito
em dicção de claro timbre
e verbo de grave sentido?
Consulte a memória
- sua fiel ancila.
Recupere vida e tempo,
convença-se:
eis-me a seu lado, cativa.
Milagre de eternidade,
permeada a seu ser,
estrela e mito.
Mas, se insiste,
confesso-lhe,
repito:
padeço funda saudade,
a lembrança me martiriza,
povoam-me incertezas,
dissipo-me entre amigos.
É tarde.
Escute-me:
de minha palavra
mal se ouve o eco
e a saudade já se faz grito...
Paris, 1970.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora, 1974. p. 72-73.
domingo, 16 de agosto de 2015
Receita para fabricar outono
(Cassiano Ricardo)
Paris: as duas margens do Sena sugerem rivalidades.
O Pont Neuf as elimina em mágica transcendência.
O mito passeia disponibilidade vaga
entre as duas margens:
éramos dois.
O tempo e seu ponteiros
mediram nosso verbo de dilatada ressonância.
De passadas primaveras, ecos apagados,
vestígios dispersos de caminhos percorridos,
dualmente.
Hoje, o sursis.
Amanhã, o inverno monologal.
Paris, outono, 1969.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 13.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Não há dor que resista a essa beleza
A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina -, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
- Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina.
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 161.
domingo, 19 de julho de 2015
Diante do fruto
A vida a que fujo,
obstinadamente,
ei-la nos teus olhos,
insistente.
O corpo que ignoro,
indiferente,
ei-lo no teu desejo,
sarça mordente.
É tempo de tentação.
Salve-nos a serpente.
Belo Horizonte, fevereiro, 1974.
QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris? Belo Horizonte: Imprensa, 1974. p. 68.
domingo, 7 de junho de 2015
Joaquina, filha do Tiradentes, de Maria José de Queiroz, novela das 23h, na Globo.
Junta-se aos bons
Márcia Prates fará sua estreia como autora de novelas em 2016, na faixa
das 23h. Sua trama, de época, será uma ficção inspirada em Joaquina,
filha de Tiradentes [de Maria José de Queiroz]. Vinícius Coimbra dirigirá a história, já aprovada
pelo fórum de dramaturgia. Andreia Horta está reservada para o papel da
protagonista.
Fonte: http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/coluna/noticia/2015/05/em-viagem-paris-marieta-severo-assumiu-camera-e-fez-imagens-para-arte-do-artista-de-aderbal-freire-filho.html
Assinar:
Postagens (Atom)