A vida inventa, é certo.
E a estória inventada vale mais, muito mais,
que o caso acontecido
contra vontade nossa e projeto.
Amores imaginados,
em mil e uma noite vividos,
com Sherazade ou Boccaccio,
trouxeram-me alegria maior
que o afeto rotineiro,
sujeito a leis, credo e rito.
Em prosa e rima,
a vida que não tive,
no estilo e modo meu,
apetecido.
Na página escrita
- espelho e abrigo -,
o mais belo dia,
de passado ideal
ou futuro sonhado,
inacontecido.
Sei bem:
intrigo,
entreteço enredos
de longos, sutilíssimos fios.
Na cena imaginária
me aposento:
vivo e desvivo utopias.
Rio baldo, baldo rio,
que da nascente à foz
de palavras se alimenta
e ao largo mar aporta
verbo de emoção contida,
sentimento de signos vestido,
lenda, fábula, mito.
Mas tudo real, pensado.
Mais real que o caso acontecido
- acidente fortuito, inesperado,
a que chamamos destino, Providência,
sorte, sina, fatal designo.
Paris, inverno de 1971.
QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1972. p. 83-84.