sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Chove em Paris...

























Decretar morte,
impor silêncio,
secar todos os rios.
Na surdez de voz e palavra,
engasgar ternos enleios,
regressar a noites brancas,
povoadas de vazio.
Resignar-me à presença
do eu que vai comigo,
atento e implacável,
lúcido e frio.

Da temeridade me ficou
o gosto do inédito
- sabor de novidade,
com que me regalei,
no desprezo do antigo império,
mercê de todos os sentidos.
Para celebrar o jamais sonhado
- desvario outonal do tempo ido,
proclamei nova ética,
inventei calendário,
vesti novo traje,
recuperei ausências,
fabriquei mitos.
Renunciei ao futuro
no compromisso do agora
mas salvei o meu sempre,
a outros deuses rendido.
Vivi de provisório.
Na nostalgia do paraíso perdido
encontrei razões de santidade,
invoquei platonismo.

Hoje, que resta?
- Do passado, curto e pífio,
  horas furtadas a medo
  a mil olhos escondidos.

Decreto morte.
Imponho silêncio.
Sequem todos os rios!
Cansa-me a lentidão do Sena:
nas suas águas perenes
vejo apenas desafio...
Nada tenho, nada resta.
Chove em Paris...
Que frio!

Paris, verão de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Coimbra Editora, 1972. p. 62-63.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Veias, artérias, nervo e sangue


Veias, artérias, nervo e sangue
- império e reino estranho.
Dia-pós-dia, nele vige o mundo:
êxitos, lucros, perdas e danos.
Intimidade próxima e distante,
nele nos perdemos, e nos reencontramos:
o infinito nele habita, cotidiano.
Na raiz do pulso, a emoção mais funda.
Nos seus limites, vida e morte:
coronárias, ritmo, pena e indulto.
Entre os seus dois pólos:
razão e intuição.
Lugares proibidos, perigo,
cilada e armadilhas,
tudo corre no sangue
e nele marca encontro
em contínua metamorfose,
em constante transição.

Ó paixão inútil!
Tentação de existir
além dos pés, nossa última fronteira;
tentação de ser
além do instinto
- castigo e redenção.

Belo Horizonte, 1972.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 27-28.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

O livro de minha mãe, de Maria José de Queiroz


Lágrimas e tinta

Uma antiga lenda judaica afirma que Deus conta as lágrimas das mulheres. Que dizer se essas lágrimas se apresentam como tinta, a tinta com que se escrevem a dor e o luto das perdas de quem escreve? Uma mulher?

Autora de ensaios, contos, romances e poemas, Maria José de Queiroz sublima, no livro dedicado à mãe, sua produção intelectual: resgata, de coração a coração, momentos de cumplicidade, de dor e de melancolia, de amizade, leituras e encantamento; com Monsenhor Messias, em Belo Horizonte, com Carlos Drummond de Andrade, no Rio de Janeiro – só para citar alguns dos amigos que agora iluminam as páginas deste livro. Sua pena e penas ferem o papel em cicatrizes, numa tatuagem sobre a pele. Que se precavenha o leitor desavisado: não as tome por trilha de caminhos que se bifurcam... Alheio ao legato em tom menor deste Confiteor, poderão escapar-lhe as variações do que é, na verdade, um oratório (à maneira de Bach).

MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é autora de ensaios fundamentais, que demonstram sua erudição e vário interesse, como A literatura e o gozo impuro da comida, de 1994; Os males da ausência ou A literatura do exílio, de 1998, e Em nome da pobreza, de 2006. Destaco, dentre seus romances, Homem de sete partidas, de 1980, com prefácio primoroso de Pedro Nava, e Joaquina, filha do Tiradentes, de 1987, republicado dez anos depois em edição integral, com posfácio da autora, pela Topbooks. A poesia de Maria José é um exercício estético rigoroso entre a exatidão e a multiplicidade. Em Resgate do real: amor e morte, de 1978, o tinteiro melancólico da autora torna-se ponto máximo de sua escrita poética.

Empenho da memória que fia e desfia o passado, O livro de minha mãe tenta recuperar a infância, a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, Maria José de Queiroz faz ecoar os fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com Alberto Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas as mães. Os dois textos comparecem, sanguíneos, no correr das páginas de O livro de minha mãe.

Artesã da palavra, como bem definiu Pedro Nava, Maria José de Queiroz faz uma louvação às mães: a todas elas, a mãe. Enquanto fere, sua escrita vai gravando, na pele, múltiplas imagens de flores, corações, rendas, asas, inscrições, algumas muito antigas, outras próximas, comuns a todos os leitores. Num recriar do fio da vida, o livro exorciza demônios, refloresce cicatrizes: tinteiro aparentemente seco e melancólico, converte-se em crisol de alquimista, fonte que transforma lágrimas em tinta. 

(Lyslei Nascimento)


MARIA JOSÉ DE QUEIROZ é doutora em letras pela UFMG, livre-docente e professora catedrática, por concurso, da mesma universidade. Visiting Professor – Indiana University, Professeur Associé – Université de Paris-Sorbonne, Gast Professor – Bonn Universitat e Koln Universitat, possui vários ensaios publicados, como A literatura encarcerada (1981), A literatura alucinada (1990), A literatura e o gozo impuro da comida (1994), Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998), e Em nome da pobreza (2006). Na ficção, destacam-se Joaquina, filha do Tiradentes (1987), Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav Ostrov, Príncipe do Juruena (1999); e na poesia Exercício de levitação (1971), Exercício de gravitação (1972), Exercício de fiandeira (1974), Resgate do real (1978) e Para que serve um arco-íris? (1982). Prêmios recebidos: Jabuti / Ensaio (Câmara Brasileira do Livro); Othon Lynch Bezerra de Mello / Ensaio (Academia Mineira de Letras); Pandiá Calógeras / Erudição (Governo do Estado de Minas Gerais); Sílvio Romero / Ensaio (Academia Brasileira de Letras); Prêmio Nacional Literário PEN Clube do Brasil / Ficção, entre muitos outros.


O livro de minha mãe
Autora: Maria José de Queiroz
Formato: 15,5cm x 23cm
252 páginas / R$44,90
ISBN: 978-85-7475-241-9
Capa: Isabella Perrotta

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domingo, 9 de novembro de 2014

Âncora e porto

Qu'il soit un port
où l'orgueil à la proue
y dorme en l'eau qui dort

(Henri de Regnier)


Entre a noite e o crepúsculo,
um porto, águas dormidas,
silêncio.

Na areia imóvel,
rastos de pés ligeiros.
O vento, em espiral,
rompe as amarras do sossego.
Em velas ociosas
a memória naufraga seus segredos.


Na linha estável do horizonte,
o sol abre, distraído,
sua cornucópia de cores:
distante, presente,
o passado se alonga
na debandada de pássaros,
nas nuvens em atropelo.

O orgulho descansa remorsos
em rochedos de grandeza.
Tormentas, sirtes, penedos
autorizam quimeras, visões, receios.

No sigilo da proa
a luz amadurece a âncora,
grávida de abismos iminentes.
Da profundeza do mar emerge,
constelada de signos,
a espuma profética.
Oh transparente monumento
Donde el instante brilla y se repite
Y se abisma en si mismo y nunca se consume!

Paris, verão de 1974.

domingo, 2 de novembro de 2014

Sem tribuna de papel

Sem uma tribuna de papel, como vê, ninguém aqui logra defender-se publicamente: palavra puxa palavra, às palavras se seguem as ações, à violência do verbo, que esgrimem uns contra os outros, sucede a violência física, ou a violência propriamente dita que é, hoje, uma instituição nacional. Seu tio não estava preparado para viver num país como o nosso. Ainda que os seus ideais políticos se abrigassem sobre a bandeira negra do anarquismo, derivavam, em linha reta, do evangelho de Tolstói. Nunca li Tolstói. Mas era o que ele proclamava. Sua estatura, seu vozeirão, seus modos agressivos, seus protestos contra a injustiça e contra a opressão não abrigavam ódio: eram fruto de amor, provinham do sentimento de fraternidade universal. Detestava a Igreja, isso sim, e abominava a política e o poder.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 128-129.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Nossa Senhora do Ó




















A Geraldo Tymburibá

Ladainha de Nossa Senhora,
Nossa Senhora do Ó:
louvação em cada verso,
súplica em todo ó.

No altar,  o ouro do rio,
nas paredes, dragões da China,
nos lábios, a ladainha.
Macau e Goa trouxeram
desenho, invenção e tinta
para celebrar em Minas 
o parto da Virgem Maria.
Capelinha portuguesa
com nome de ladainha.

Nossa Senhora do Ó (*)
navega em nau da China
e no porto do Rio das Velhas,
no Sabará, Sabarabuçu,
ancora a sua capela.
Capela, capelinha,
barca celeste de ouro
que reza à Virgem Maria
na margem do rio de Minas.

Paris, fevereiro de 1971.

(*) Leia-se, de António José Saraiva, "Les quatre sources du discours ingénieux dans les sermons du Pe. António Vieira", in Bulletin ded Études Portugaises, 1970, nouvelle série, t. 31, p. 177-270, a propósito do culto a Nossa Senhora do Ó na Península Ibérica e no Brasil. Curiosa, engenhosa mesmo, a definição de Vieira que vê no Ó o símbolo da eternidade.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973, p. 34-36.

domingo, 14 de setembro de 2014

Entre ampulheta e clepsidra


Raio de sol,
alegria transeunte,
aroma de efêmera residência,
eis o que sou.

Povoei de escândalo
o teu outono,
ensinei-te comas
e semicomas
de modinhas esquecidas,
com letra, música
e cadência,
de Ovalle e Mignone,
talvez mais.




Desviei teus passos,
incendiei tuas inibições,
dei-te chaves
de desconhecidos falares.

Ensaiaste voo
por atlânticas finitudes,
sereno, altivo, ileso.
Se me esqueceste,
não me traíste,
em aliviado suspiro
confessaste
o gozo e o júbilo
do amor recuperado,
intacto,
no macio colo
de diferente abraço.
Oh irrisão de verbo inocente!
Insensata disponibilidade!

Num maranhão de conflitos
me perdi. E te reencontrei.
Tão distinto, tão mortal,
cotidiano,
integrado à grei humana,
sem auréola ou pedestal.
Ceguei-me.
Queimei indiferenças
no fogo de castos intentos.
Porfiei, apesar de.
Porfiamos, ainda.
Sofremos dúvidas
de cruel padecimento
Azulei melancolias
em crise de alma
e vocação.
Na incerteza do afeto,
desentendeste parábolas.
Pagaste ingrata gabela
de fossas monumentais.

Assumi tuas catarses,
enfrentei dicotomias,
rendi-me a novo sursis.
Curei vacilações
no empenho definitivo
de ajustada sincronia.
Proclamei em alto grito,
indiferente a todo dano,
felicidade a prazo fixo,
sujeita a leis, correios, âncora.
Avoquei responsabilidade
de falência previvida
no lúcido endosso
do título precário.
Em modo teu, muito próprio:
viverei de memórias, justificada.
E atenta ao que é digno, justo e salutar
- como se lê no Prefácio
de antiga liturgia, Ordinário ) -
jamais me ocorrerá
semear maravilha, sonho ou ilusão
em território alheio,
adubado de sal e pranto,
firmado em santa aliança
de fé, papel e casa cristã.
Que me troquem (antes isso!)
em  tempero de eterna paz,
reconquistada.
Na solidão de noites ermas,
lembrarei que és feliz: tanto me basta.
No silêncio,
povoado de palavras,
florescerá o verso
de breve pena,
verso emplumado,
verso alado,
volátil:
redenção de asa e pluma
do delito de amar
em diacronia
entre dois intervalos
de água e areia.


Paris, fim de primavera, 1970. 


QUEIROZ, Maria José de. Exercício de Levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 76-79.


sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A irritante resignação

Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 336.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Era amor à primeira vista...

Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Olstrov, príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Reccord, 1999. p. 84.

domingo, 29 de junho de 2014

A terra do amor

Esta é, salta aos olhos e à inteligência, a terra do amor. Como se fosse preciso acrescentar que o último livro do crítico e professor do Colégio de França - Roland Barthes -, se chama Fragments d´un discours amoureux. É. todo mundo anda aos pares: Abelardo e Heloísa, Henrique IV e Gabrielle d´Estrées, a Pompadour e Luís XV, Yvonne Printemps e Pierre Fresnay, Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault, Roland Petit e Zizi Jeanmaire, a Greco e Michel Piccoli... Até o ménage à trois, instituição francesa, se abriga à sombra do casal. A solteirona, à brasileira, ou à mineira, não existe. Nem é, sequer, raça em extinção, como entre nós. É raça extinta. A celibatária vive aqui à sombra de código próprio. Com direito a fantasias e mais divagações amorosas. Dorme com quem quer, move-se livremente dentro de uma sociedade que aceita sem preconceito as uniões passageiras, com ou sem intuito de legalização. A escolha do celibato não se vincula à castidade. Nem nome conhecido (conhecidíssimo!!!) morreu, faz pouco, na casa da amantes, prostituta de preço.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 54-55.

domingo, 15 de junho de 2014

Celebração da hospitalidade

Gratidão hospitaleira
quarto ensolado,
nesga de azul a espantar pesadelos,
mar murmuroso a despertar naufrágios.
Entre muros
a florescida lição:
casa plantada no meio dos homens,
porta aberta a todos os ventos,
paredes caiadas de bênção divina.
Amiudado o riso
na dualidade harmônica,
nos chinelos solícitos,
nos pijamas aurorais,
no holocausto matinal de barba e sonho,
nas ilusões desfeitas
em espumas alvais de sacrifício.
O referente ofertório na toalha e no pão.
No lento mastigar, o ritual eucarístico.
Em diário suor, o cumprimento da promessa.
No descanso angular da poltrona,
a justificação do trabalho.
O preguiçoso divagar do fumo volátil,
livre espiral
        ágil e
        lábil.
No retângulo iluminado de imagens fugidias,
o refúgio do silêncio.
Oh! encantada surpresa
do trivial infantil
Alegria mansa
de fidelidade fiel
a
fiel companheira.
Tranquila amenidade
na berlinda
do merecido aplauso
e consagrado êxito.
A alma serena,
encolunada de cânones,
celebra hosanas
de devoto culto
em
vigília
genuflexa.

Receita de felicidade,
aprendido o susto,
bem medida,
temperada,
a quatro mãos
e cúmplice afeto,
com sabor requintado
de
i
mortalidade.

Na excelência do convite,
o exortado exemplo.
Na gratuito magistério,
privilégio de raros,
o gesto agradecido
da retribuição.
Mestre ontem,
hoje discípulo -
milagre dosado
em libra de sal - régio salário
à
solitária
disponibilidade.
Quanta lição!


Paris 15/2/1970.



QUEIROZ, Maria José de. Exercícios de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 30-32.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Recitação de inverno



QUEIROZ, Maria José de. Recitação de inverno. In: ______. Exercício de levitação. Coimbra: Atlântida Editora, 1971. p. 14-15.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O exercício do papel do usurpador

Esvaziados os conceitos de Direito e Justiça, nada resta ao legislador além da aplicação da lei pela lei. Isto é, o exercício do papel do usurpador. Incapaz de aplicar a justiça, o regime justifica a força, abolindo a liberdade. No entanto, a autoridade arbitrária - veículo transitório do poder, esgota-se em si mesma: nada mais enganoso que a imposição da lei pela força. Aquele que a ela se rende transfere ao regime o desvirtuamento do princípio de autoridade. E o abuso do poder reconduz, fatalmente, a liberdade à sua origem. Quem nada tem a perder, tem tudo a ganhar...

QUEIROZ, Maria José de. A literatura encarcerada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 97.

domingo, 9 de março de 2014

Agora canto

Agora canto,
sim,
canto:
a violência da calma, o furor do silêncio,
a revolta contida, a raiva, o rancor,
a fraude do afeto, o sangue, a ofensa,
o desdém ao recato, o insulto ao pudor.
Que ocorram às minhas palavras
a doçura do pomo maduro,
a peçonha da serpe maldita,
a ciência do bem e do mal.
E ao suor do castigo nefando
(que atou o pão ao trabalho)
se misturem as dores que sinto
ao trazer ao sol e ao calor
criatura de Deus concebida
em pecado e ao pó condenada.

QUEIROZ, Maria José de. Para que serve um arco-íris?  Belo Horizonte: Imprensa, 1982. p. 44.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Diante de Osíris (Egito)

Livre dos laços do sangue,
imune à corrupção da carne,
subi à montanha de Tebas.
Mertseger, a amada de Osíris,
a amiga do silêncio,
encontrei-a à minha espera.
Aos quatro filhos de Horo
entreguei as minhas vísceras,
em quatro canopos embalsamadas.



Sob a proteção de Selkis
o meu corpo será preservado.
A Amset dei o meu fígado,
a Hapi, os meus pulmões,
a Duamutef, o meu estômago,
a Qebesenuf, as minhas entranhas.
Graças aos meus talismãs
e à lição do Livro dos Mortos
atravessei o reino da ausência
quando a noite submarina
naufragava na areia lodosa.
À força de atar nomes e signos
a escaravelhos, urnas e papiros,
aprendi a origem fatal
de todas as origens:
iniciei-me no ciclo solar,
no segredo das serpentes enroscadas,
no sigilo das cinzas do esquecimento,
no simbolismo do fumo em espiral,
no destino dos animais impuros.
Tomei o meu caminho,
isento de maus augúrios.
Beijei o umbral sagrado
de acesso ao saguão imenso
diante do Juiz soberano;
na Sala do duplo juízo
aguardei a minha sentença.
A mitra de cor branca
ressaltava-lhe a tez escura.
O olhar magnânimo,
Osíris acolheu-me com bondade.
Junto de enorme balança,
Maat — a deusa do Direito,
da Justiça e da Verdade,
assistida por Anubis e Horo.
Num canto, de cócoras,
Amamet — a Devoradora,
olhava-me com sanha,
pronta a punir meus pecados.
Mas Osíris, o Redentor,
Vigiava o monstro esfaimado.
Quarenta e dois juízes,
vinte e um de cada lado,
examinaram-me a consciência
tentando descobrir
o mais mínimo desvio,
a mais leve falta.
Chamando-os pelo nome,
um a um, sem vacilar,
recitei, gravemente,
a confissão bem decorada.
Declarei minha inocência:
dei pão a quem tinha fome,
dei água a quem tinha sede,
vesti os que estavam nus,
ao náufrago emprestei barca,
aos deuses levantei altares.
Fiz o de que falam os homens
e o de que se rejubilam
os que são glorificados.
Contentei a Deus
naquilo que Ele ama:
sou justo
e sem pecado.
As divindades propícias
iluminaram-me a memória,
afastaram de mim o receio,
afugentaram as estrelas febris,
fortaleceram-me a palavra.
Terminado o discurso,
convocaram meu espírito
para a pesagem da alma.
Anubis tomou o meu coração;
no outro prato da balança,
a equilibrá-lo,
a própria Maat — símbolo da Verdade.
Thot, vizir de Osíris,
Senhor do Verbo eterno,
consultou as suas tábuas:
nos dois pratos — o peso exato.
Na sua linguagem aérea,
de cores e de música,
em timbre de clarim,
a assembleia dos juízes
proclamou em voz alta
o veredito divino:
Que o morto seja livre,
livre para dispor de si mesmo,
livre e vitorioso
no seio dos espíritos
e no meio das divindades,
Senhor do tempo e do espaço.
Desde então guardo o campo dos deuses,
vigio diques e canais.
Os respondedores, meus escravos,
acorrem ao meu chamado
para eximir-me de trabalho.
Do mundo apenas me chegam
os séculos das idades
na perfeita sabedoria
de Thot
— o patrono da história. 

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 47-50.