sexta-feira, 1 de junho de 2012

Amor

 Cantabile

Com a boca escreves poemas
e com a voz os ensoas.

Letra por letra soletras
a tua coita de amor.

Guaiado te proclamas
nos suspiros prolongados,
nas sílabas lhanas.



E tatibitate repetes,
os lábios colados à pele,
a tua cantiga de amor.

Os versos crescem,
encadeiam-se,
e em estrofes se alargam.

Aos dedos, o ofício
de espertar as cordas
sensíveis ao dedilhado.

Música e letra se unem
para elevar ao amor
hino de carne e palavra.

Rimas em colcheias,
aféreses em quiálteras,
tudo transportas à escala.

Compasso por compasso
inventas canção de amor
no mais raro teclado.
Em sustenido maior
vivemos noite larga:
invenções a duas vozes,
fuga e contraponto,
acordes temperados.

À primeira luz do dia
dissipam-se no ar
seus últimos harmônicos
- cadência plagal,
exata.

De tua boca evolo,
volátil:
sou poema
cantabile.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 25.

domingo, 29 de abril de 2012

Deus e os cavalos

            Para José Ernesto Ballstaedt

“... e después de Dios, debemos la victoria a los caballos”
(Bernal Díaz del Castillo)

A história da América
nas patas dos cavalos.
Deus e os cavalos.
No México de Montezuma e de Guauhtemoc,
no Peru de Huáscar e Atahualpa,
no Chile de Colocolo, Caupoliclan e de Lautaro.
Destros e firmes ginetes,
fortes e ágeis centauros;
Córtez, Quesada, Valdivia,
Alderete, Almagro, Pizarro.
Vontade de poder, pulso e rédeas,
gana de conquista, “cierra España” e Santiago.
Mais, astecas e aimarás,
chibchas, miscas e incas,
impérios de alto prestígio,
Minas de ouro e de prata,
as sete cidades de Cibola,
o mítico El Dorado,
a fonte de Juvência,
as amazonas indomáveis
renderam-se aos cascos sonoros
do conquistador conquistado.

Depois de Deus, os cavalos.
Nas suas patas, dez mil anos de história:
o círculo do universo, a bússola,
a imprensa, a Bíblia, a Reforma.
Dos olivais de Sevilha aos campos de Granada,
dos montes de Aragão e Castela, seca e árida,
fidalgos de armas ilustres,
filhos de humildes casas,
heróis e aventureiros, cristãos iluminados
vincaram no chão da América o seio da Conquista
de timbre ibérico, celta e árabe:
cravos e ferraduras, em quatro golpes gravados.
O capitão Cortés no seu cavalo zaino,
Pedro de Alvarado na metade de uma égua,
tomada a Lopes de Ayala.
Hernández Puertocarrero numa russa ligeira
E Velásquez de León na sua Rabona agitada.
Cristobal de Olid num castanho escuro de raça
e Francisco de Montejo num alazão tostado.
Juan Sedeño, o rico, na égua castanha
(que deu cria na viagem).
Ortiz, o músico, no Arrieiro, um dos melhores da armada.
Esses e outros cavalos, de “ancas reluzentes e cascos musicais”,
galopam com Bernal Díaz, da província de Yucatán
às fronteiras da Nova Espanha, na Relação verdadeira
Dos feitos e façanhas dos soldados de Cortés
Em terras ignoradas.
Villano, Zainillo e Salnillas sustentaram a Pizarro,
Gonçalo de nome, irmão de Francisco – Marques de Atavillos,
nos seus mais rudes combates.
O seu lugar-tenente, o “Demônio dos Andes”, o famoso Carvajal,
Em Sacsahuaman, com Boscanillo, perdeu sua última batalha.
No celebrado Matamoros, o capitão Palomino
cruzou primeiro o Peru
e chegou logo a Granada
(a Granada do Novo Mundo que  muitos chamam Nova Granada).

Ao adelantado De Soto, uma das melhores lanças
que às terras do Norte passaram,
Acompanhou El Aceituno
na Expedição da Flórida.
Hipogrifos desnastrados,
os cavalos andaluzes
chegaram com Juan Díaz
a Palermo e a Buenos Aires.
Na noite imóvel, decifrada por Anaxágoras,
o conquistador fez-se gaúcho;
povoou o pampa de machos.
Matou índios, carneou rezes,
morreu de sua morte
quando a cidade lhe arrebatou o deserto,
opondo a civilização à barbárie
Cow-boy, gaúcho, llanero,
vaqueiro, peão, tropeiro
perseguem no tempo unânime
as léguas fatigadas
de centauros sublimados,
firmes nas quatro patas.
Depois de Deus, os cavalos.


sábado, 7 de abril de 2012

Projeto: Romance Histórico



Projeto: Romance Histórico - Minas Gerais: Joaquina, filha do Tiradentes.

Direção: Lesle Nascimento
Produção: Lyslei Nascimento
Arte, Fotografia: Lesle Nascimento
Roteiro: Lyslei Nascimento
Câmeras: Lesle Nascimento & Márcia Nascimento
Edição e pós-produção: Lesle Nascimento
Trilha: "Gymnopedie", de Erik Satie, por Kevin MacLeod
Agradecimento: Sra. Regina Bilac Pinto

Rio de Janeiro, março 2012.

segunda-feira, 12 de março de 2012

A serviço do verbo















Estranha fascinação, a da palavra!
Milagre cotidiano ao qual rendo,
extasiada,
devoto preito
de vestal.
Admiro-lhe forma,
cor e sonoridade.
Ao seu prestígio atenta,
esqueço vida, amor, mundo.
Para servi-la, humilde e cauta,
desperto, todas as manhãs,
inquietudes indormidas,
penteio cérebro e ideias
à procura do verbo
que me certifica
da humana existência,
de paisagens improváveis,
e coisas presumíveis.
Atrás do conceito cabal,
fugidio e esquivo,
apalpo a prova exata,
definitiva,
razão de todo empenho
em que me perco, alienada.
Dias, anos, sangue e espírito,
tudo dissipo
em contastante fuga,
distraída.

Transfiro à frase escrita
emoção e sentido:
outros os emprestam
aos guisos de tenra idade,
aos risos da adolescência,
aos anseios amorosos
de três e mais estações.

Minha herança, por páginas semeada,
floresce enquanto padeço
pena e angústias de criação.
Depois, feito o silêncio,
em doido transe me interrogo:
que restará da página plena
e do viver inconcluso.
Mas ante o vazio do branco puro
ao sonho volto,
fugo em quimeras,
alheia ao mundo,
imatura.

Essa, a vida que me dei - reflexo e imagem.
Perdi-me em signos, inventei-me.
Agora me reencontro:
no espelho, e no fim deste verso, maduro.

Paris, primavera de 1970.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação.Coimbra: Atlântida, 1972. p. 70-72.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Minas além do som, Minas Gerais

A Carlos Drummond de Andrade

Todos os caminhos do mundo se abriram em veredas,
veredas de sertão mineiro, severo, agreste.
Todos os muros se fizeram montanhas,
montanhas de Minas, graves, austeras.
Corri países, mudei constelações
de vário brilho e diferente estrela.
Descobri parentes vascos e belgas,
duas tias em Lião.
- Outra fala, outra costela,
distinto sangre, nova pele.
Primos de todos os graus,
dos quatro cantos da terra,
completaram a família
em Cocais e Cláudio começada
e hoje, longe, tão  longe dos gerais
ganha continentes, espalha-se sobre o mapa,
em roda larga, completa.
Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcatéia.
Na esquina de mim mesma
entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam
montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado
a paz se restabelece.
Minas existe.
Vivo de sua herança: ilesa.

Paris, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 221-224.

Minas Gerais, "estado d'alma"










Para Manuel Bandeira

Minas soluça em todos os nossos remorsos.
Em cada abstinência, sacrifício,
em cada continência, frustração.
Entre os grandes, amordaçar-se,
entre os pequenos, calar-se;
presença quase ausência,
nenhum desejo de ser notado.
Os olhos baixos, o riso raro,
a modéstia escondida
na voz tímida, no gesto tardo.
O mineiro se exime de escândalo
para condenar-se ao hábito.
Na alma, o maior dos pecados:
a vaidade de não ter vaidade.
Sobriedade no vestido,
mesa frugal, alguma carne;
feijão, angu e couve,
pouco açúcar, queijo, café ralo.
Nos pés calçados de ferro,
o peso da gravidade.
Longe de Minas o luxo, o mar, o alarde.
Metade da vida se perde
no silêncio prolongado,
na saudade das grandes águas,
na nostalgia de longos praias.
Na montanha elevada,
a nossa maior audácia:
o olhar arrebatado
inventa façanha e obstáculo.
No sonho de liberdade tardia,
a Utopia malograda;
na cisma do cigarro de palha,
metafísica de fumaça;
no latim e na gramática,
a rêmora do Caraça;
na linguagem monossilábica,
retórica de estilo ático;
no culto da família, tradição e propriedade,
ronha de sacristia,
muita traça.
No sertão bravo e zona da mata,
a filosofia do asfalto:
Arinos e Riobaldo.
a verdade verdadeira é que Minas soluça
em todos os nossos remorsos;
os gerais justificam
a nossa lentidão e cansaço:
Minas Gerais, "estado d'alma".

Belo Horizonte, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 14-16.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Rayuela, de Julio Cortázar

Rayuela (1963), de Julio Cortázar, obra-prima da "nova" literatura hispano-americana (que hoje se deu de chamar "latino-americana"), também foca a vida num manicômio. O interesse da intriga concentra-se em algumas personagens cuja permanência numa clínica para doentes mentais pouco tem a ver com a demência. Horacio Oliveira, um dos protagonistas, pode vislumbrar, da janela do seu quarto, os riscos do jogo da amarelinha no pátio do hospital. Uma noite, assiste dali do seu posto à tentativa malograda de Talita, de fazer passar a pedra do jogo ao número 8. Ela falha, e é nesse instante que ele descobre tê-la confundido com Maga, sua amante. Jogo do amor? Jogo da amarelinha? Iluminação súbita?

QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990, 139-140.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

1789-1790

Que sílabas latinas ressoassem em terras incultas e que a aplicação aos estudos significasse apenasmente amor desinteressado à ciência e ao saber parecia coisa absurda aos olhos e ouvidos dos promotores da Devassa da Inconfidência Mineira. Não nos compete, no entanto, desentender-lhes os argumentos. A história já os deu por entendidos. Vamos além.

Das inúmeráveis doutrinas registradas no Século XVIII avulta em importância, e em prestígio, a Ilustração. E Luís Vieira da Silva, como tantos outros inconfientes, não só a conhecia como a professava no silêncio da sua biblioteca frequentada pelo diabo,* inspirador da Enciclopédia e do racionalismo.

Se é verdade que raramente se sabe, ao certo, aquilo em que se crê, a ninguém, mais que ao Cônego suspeito de sublevação, se deveria aplicar  o aforismo. Ilustrado, nutrido de boa ciência, bem informado, muito natural que Voltaire, grande agitador de ideias, e o abade Mably, utopista, lhe ensinassem política e rebeldia. Contudo, a sua memória, espelho de  noites e dias de leitura, pouco o ajudou durante o interrogatório da Ilha das Cobras. Não lhe lembrava se entre as pessoas da sua amizade jamais se tivesse falado sobre a matéria do levante nem que dele lhe tivessem dado qualquer notícia.

Todo o seu passado de dedicação à Igreja, pois era sacerdote exato e de firme crença católica, bem como o prolongado empenho no saber, de nada lhe valeram. O seu primeiro sentimento, os autores o comprovam, foi o de eximir-se de toda culpa, declarando-se alheio à conspirata infame. Depois, instado uma e mais vezes para que confessasse a verdade, à qual tinha faltado, respondeu,"cuidando só dos seus deveres, tratando como mais importante do bem espiritual sem se embaraçar com o corpo, (...) dizer tudo o que sabe, cumprindo com isso as obrigações de fiel vassalo que Sua Majestade tome as providências que for servido."**

Essas coisas aconteceram em 1789 e 1790.

Antes que chegasse ao seu fim, o Cônego Luís Vieira da Silva se viu privado da sua livraria, todos os seus bens confiscados pelo Governo. Só não lhe confiscaram a erudição, penosamente adquirida. Confiscou-a a morte, impiedosa. Não se procedeu, então, a devassa nem se lavrou auto de sequestro.

* Leia-se, de Eduardo Frieiro, O diabo na livraria do Cônego. (Belo Horizonte, Editora Itatiaia Ltda., 1957). O autor avalia, à vista do catálogo dos livros confiscados, o apetite de cultura do inconfidente que o malogro da conspiração frustrou para sempre.
** Cf. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, p. 299.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram: fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 69-73.



quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ano novo, vida nova

Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 30.

domingo, 6 de novembro de 2011

Todos os males da alma

Não há como negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma. A Shakespeare, Dostoievski, Flaubert e Zola caberia, andando o tempo, atualizar os sintomas de algumas das suas patologias e vincar o caráter mórbido dos seus desvios. Quando Freud chegou, só teve, mesmo, o embaraço da escolha. A primeira anamnese, a mais extensa, de nossas paixões como de nossos vícios e, também, de nossas virtudes, já estava feita. À ciência competia a comprovação, o estudo de casos, a identificação de édipos e eletras, hamlets, macbeths e karamazovs na conduta psicopatológica dos burgueses do nosso século, assegurada a validade científica da identificação. Tudo se passa como se o psicanalista ouvisse do cliente a mais perfeita auto-análise de um caso clínico. E o que é excepcional, nos termos próprios e sem atentados à língua. A literatura põe à disposição o que poucos pacientes estão habilitados a fazer: o mergulho no inconsciente. Com os olhos abertos, sem traumas, sem megalomanias e sem delírios. Tal requinte descritivo dificilmente ocorreria ao analista, muito mais atento ao "fenômeno", e a tudo que aproxime o sujeito da patologia, do que à sua essencial individualidade (inerente à criação literária). Que resta à ciência? A responsabilidade de uma nomenclatura adequada e o endosso idôneo de um especialista, apto a divulgá-la.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11-12.

sábado, 30 de julho de 2011

A pobreza: João Antônio, a fotografia

Salvo melhor juízo, difícil será apontar um autor contemporâneo, de prosa requintada, se bem que popular, que melhor se alinhe neste acervo da pobreza que João Antônio, o autor do clássico Malagueta, perus e bacanaço. Não podemos aproximar-nos do cotidiano de ternura, aspereza e sofrimento das suas personagens sem um descortino da literatura proletária - escrita por operários, e da literatura popular - de autores cultos. Porque tudo está aí, nesse clássico. Todos os percalços e todas as conquistas do gênero, que se mimetiza com o meio, que sorve e absorve o ambiente para transmiti-lo no sentimento, nas emoções, nos gestos e o boleio das frases num tom tão afinado que torna o autor parente, senão pai, do mendigo, da prostituta, do jogador de sinuca, do malandro, do ladrão, do meninão do caixote.

QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 191.

sábado, 25 de junho de 2011

Os males do exílio: um inventário, por Lyslei Nascimento

Uma página fundamental da história do exílio no Ocidente é Os males da ausência ou A literatura do exílio de Maria José de Queiroz. O olhar sensível da escritora fazem um inventário dos males da ausência e rastreiam, nas obras dos expatriados, a “síndrome do desterro”: o sofrimento e a dor do exílio.

Dedicado aos brasileiros exilados – de ontem e de sempre –, o ensaio parte do mais remoto exílio de que se tem notícia – o do egípcio Sinuhe (cerca de 2000 a . C.) até o arquivo de Herman Görgen, “o amigo do Brasil”. Dante, Camões, Leão Hebreu, além de Defoe e Victor Hugo, só para citar alguns, são autores estudados pela ensaísta que se envereda também pelo destino dos jesuítas desterrados, pela reescrita irônica da correspondência de Voltaire, pelas ilhas de Rosseau, pelo passado reinventado de Nabokov e pela narrativa angustiante do exílio e morte de Walter Benjamin: a primeira verdadeira perda que Hitler impôs à literatura alemã.

O leitor – aquele que deverá acompanhar a ensaísta por esse mapa de infâmia – não pode perder de vista a nostalgia e as privações em terra alheia de que dá notícia a palavra no exílio. Além de ser agraciado com uma narrativa que aponta, não só para o mal, o leitor perceberá as saídas dos escritores na contingência do desterro. Esse tom do ensaio – entre os males da ausência e as estratégias de sobrevivência – aponta para questões cruciais pra o estudo da literatura do exílio: o sentimento patriótico, as tradições e as culturas que se entrecruzam e a dependência à língua.

Os capítulos dedicados ao exílio e ao êxodo bíblicos são primorosos. Neles, Maria José reflete sobre a fundação da primeira cidade pelo desterrado Caim; a configuração mítica de Jerusalém e o exílio na Babilônia. A diáspora do povo judeu até a bíblica Sefarad (Hispânia) e os anos de ouro do convívio pacífico entre judeus e muçulmanos são apontados pela escritora como fatores determinantes do progresso da literatura, da arte e da ciência.

No capítulo “Amargo ar do exílio – vinho envenenado”, o leitor acompanhará as narrativas dos escritores russos emigrados como Nabokov, Brecht e Nina Berberova. Em “A outra Alemanha”, Maria José desfia as malhas do poder que determinam o degredo e o sentimento de alijamento da “terra ancestral” e da língua.

Algumas frases dos escritores do exílio, citadas pela escritora, iluminam o ensaio, como por exemplo a reflexão sobre a pátria de Séneca: “O mundo inteiro é nossa pátria para que o nosso valor se prove com amplidão”; o pensamento de Hannah Arendt “A língua materna é a única coisa que se pode levar consigo quando se deixa a velha pátria” e a sentença de Peter Weiss: “Aquele que emigra uma vez será sempre emigrante”.

O ensaio é acompanhado por dois cadernos iconográficos, cerca de quarenta reproduções fotográficas, que trazem para o leitor a imagem de alguns dos escritores analisados. Destacam-se, célebres, a especialíssima fotografia da expulsão de Soljenitsine da Rússia e a de Bertold Brecht e Oskar M. Graf numa cervejaria. Também acompanha Os males da ausência ou A literatura do exílio uma extensa bibliografia, cerca de 800 títulos, que constitui uma valiosa contribuição para estudiosos e pesquisadores que se têm debruçado sobre a história dos intelectuais.

A escrita do exílio examinada pela escritora configura-se, assim, como um vasto painel do pensamento humano que aflora das páginas do ensaio em sua beleza e pertinência. Nesses tempos em que a luta contra os poderes arbitrários se faz tão necessária, instiga-nos, no livro de Maria José de Queiroz, o olhar lúcido do intelectual brasileiro para a produção cultural do Ocidente e suas reverberações na instância das relações entre o homem, a escrita e os seus algozes.

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 714p.

A América, essa nebulosa, por Lyslei Nascimento

A América é, de modo muito significativo, o mundo ao qual se arrebatou o nome. Essa epígrafe de Arturo Uslar Pietri introduz os instigantes ensaios de Maria José de Queiroz em A América sem nome. Na série de ensaios que compõem o livro, a escritora retoma algumas reflexões teóricas iniciadas em A América: a nossa e as outras, 1992. Esses ensaios intentam localizar a América Latina no contexto mundial contemporâneo, explorar algumas manifestações culturais como o tango argentino e a poesia antilhana, compor os perfis dos escritores César Vallejo e Pablo Neruda e dar uma visão literária de Perón e do peronismo.

No ensaio intitulado “A América Latina no mundo moderno”, Queiroz focaliza o ponto de vista dos americanos do Norte para a qual, segundo a autora, a América do Sul, não passa de uma unidade nebulosa “sacudida por tormentas políticas, varrida pelos ventos da discórdia civil e militar” e composta por países exóticos cujas cidades - Rio de Janeiro ou Buenos Aires - são apontadas como “capitais de qualquer um dos países desse aglomerado de republiquetas sem história e sem tradição”.

Outra preocupação da ensaísta é o nacionalismo que se apresenta com um duplo corte: o que reduz a pátria às fronteiras do mundo conhecido e que reduz o conceito de nação à terra cultivada, a paisagem rural ou urbana onde se planta a casa, o lar; e, por outro lado, “o nacionalismo às avessas que valoriza o que vem de fora em detrimento daquilo que existe, que se produz e que se realiza dentro das fronteiras”.

No ensaio “A Literatura hispano-americana - essa desconhecida”, a escritora, aborda a dificuldade de se referir a América, diante da diversidade e do fragmentarismo, mas aponta para uma possibilidade de equilíbrio ao refletir sobre uma “consciência integradora” que não exclui a herança ocidental, mas que a assimila e a absorve na sua modalidade atlântica. Por essa via, Maria José de Queiroz refere-se a alguns exemplos da intrusão americana na literatura européia. Como, por exemplo, o judeu sefardita Leão Hebreu, o mexicano Juan Ruíz de Alarcon e Jorge Luis Borges.

Em “O homem macho e a hombría: variações em torno do machismo”, a escritora parte da distinção entre “exercício de bravura” e o “machismo exibicionista”. De acordo com a autora, a o culto da hombría, da virilidade agressiva aparece, geralmente, nas sociedades em formação e que os principais herdeiros do patrimônio violento, sagaz e mítico são, entre outros, os vaqueiros, os cowboys, os tropeiros, gaúchos. Nesse ensaio, Maria José de Queiroz estuda a interessante figura do Don Juan e a incerta certidão de virilidade conferida por sua vasta biografia amorosa. Segundo a autora, a fome de amor e a insatisfação exibem no caráter do “burlador de Sevilha” sua falência enquanto “homem viril e inteiro”.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997, 197p.

sábado, 11 de junho de 2011

Amore


















Minhas mãos anoiteceram
na negra prisão dos teus cabelos.

No teu olhar sombrio
repousei alacridades claras
da luz fatigante do dia.

Fez-se noite,
Noite escura, densa,
de noturno apassionato,
con brio.

Rendida ao seu sortilégio,
entre sombra e penumbra,
abriguei pudores,
disfarcei deliquios.

Nos teus ombros firmes
busquei asas,
precipitei-me contigo.

À margem dos teus nervos
ouvi derivarem rios.

Nos teus músculos tensos
peixes e cardumes
fugiam ao meu abraço
e na fugida me levavam,
rápidos, umentes, frios.

No coleio das águas envolvida,
ficava e repartia.
Ao apelo da ribeira,
ora dilatava,
ora corria.

De surpresa em surpresa empolgada
diante de mim tuas constelações se abriram:
recitei tuas estrelas,
de caricioso pastoreio,
enquanto nos teus olhos esplendia
céu de azul profundo - maravilha!
noturno apassionato, con brio.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 35.

A herança de Caim


O doce Abel
Caim, o mau.
A inocência lastimada,
a violência impune
murmuram nos nossos ouvidos
melopéia inquietante
de fatigado estribilho.
O seu eco nos atormenta
com triste acento
e renovado luto.
A morte de Abel
- crime sem vingança,
sangra nas nossas mãos:
o seu corpo, insepulto,
povoa o vazio obscuro
onde a dor é castigo.
Nas suas pálpebras lentas
a noite flui
como um pássaro fúnebre
em nebuloso aprendizado
de guerra e discórdia.
Nas nossas trevas,
um imóvel esplendor:
a herança de Caim multiplicada.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 41. 

Os animais pastam, o homem come; apenas o homem de espírito sabe comer


E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se a mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 60.

domingo, 15 de maio de 2011

Entre o ensaio e a ficção, por Maria José de Queiroz


É preciso esclarecer: sou uma estudiosa. Tenho passado grande parte da minha vida nas bibliotecas e nas salas de aula. Concederam-me até o privilégio de permanecer, trancada à chave, durante o almoço, em Coimbra, na sala de leitura da biblioteca da Universidade, em Frankfurt, na Deutsche Bibliotek, e, em Paris, na Bibliothèque de la Sorbonne. Vivo numa torre de papel. Entenda-se: não de marfim. Ainda assim, longe dos lugares onde se decide a nomeada do best seller. Vivo para os livros, não dos livros. Digo que tenho cinco leitores. Para minha surpresa, sempre aparece quem se declare meu sexto leitor. É para ele que escrevo; os demais são cativos. Incluo-me, portanto, entre os autores de 'imensa minoria'. Não que escreva 'difícil'. A clareza é a polidez do escritor. E para não distanciar-me da rua nem do povo, freqüento o humano, o demasiadamente humano: o amor, a droga, a loucura, a violência, a prisão, a comida, o automóvel, o tango... Esses, os meus temas. Tratei de humilhados e ofendidos, de excluídos e de minorias. Escrevi extensamente sobre o índio e sobre o negro, sobre os judeus, a mulher e o espaço urbano, o exílio e a pobreza. Por que não tenho mais audiência?...
O ensaio é a minha forma natural de expressão, pois sou professora, professora de literatura. Mas como me dirijo, na página escrita, ao leitor comum, varro do texto o jargão catedrático. E... principalmente, não dou respostas. Deixo isso para os filósofos. Tento, ensaio (aí está) explicar, de forma acessível, o assunto abordado. Ao modo de Montaigne, o autor dos Ensaios, guia-me o acaso. E escrevo até que julgue ter levantado um número suficiente de questões. Claro que não esgoto o assunto. Foi o que fiz ao falar do exílio e dos exilados: voltei aos hebreus, cheguei aos dias de hoje, mas não esgotei o repertório da infâmia. Ensaiei. Apenas isso.
Nada existe de mais grato aos sentidos e à inteligência do escritor que escrever. Mas, também, nada mais terrível, nem mais angustiante. Quando se escreve ensaio – veículo natural do estudo, apto à análise de interesse e mérito literário, sociológico ou filosófico – escolhe-se, antes de enfrentar a página branca, o tema a abordar. No caso da ficção, nem sempre isso acontece. Parte-se de um pretexto: uma notícia na imprensa, um episódio subitamente resgatado pela memória, um incidente que desperte nossa atenção sem motivo claro, plausível.
A verdade verdadeira é que, grato ou angustiante, o ato da criação nos redime das misérias do cotidiano. Por isso, e muito mais, estou pensando em deixar o ensaio e instalar-me, mala e cuia, na ficção. Adeus notas de rodapé, citações, índices, prefácios, posfácios, bibliografias exaustivas... Viva a criação.


Fonte: http://www.klickescritores.com.br/mjqueiroz00.html

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes

Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes. É necessário saber escolher. E bem. Nada de insegurança. Ao verdadeiro homem se conhece nos momentos de decisão. E tomada a decisão, aquele que tem fibra arca com as consequências. Chegado o momento, assuma suas responsabilidades. E não peça licença à sua mãe, nem ao seu pai, nem ao seu tio, nem ao cura nem ao delegado para viver. Viva a sua vida. Seja dono do próprio nariz. Se quebrá-lo, é seu. Ninguém tem nada a ver com isso. Homem de nariz quebrado, continua homem. E nariz a gente conserta. O que não se conserta, nem se remenda é a dignidade. Não está na cara, como o nariz. Apesar disso, é visível. E se estampa, com muita manha, nos olhos e nas vozes dos outros. Até no escuro. Convém, portanto, tratar de conservá-la. Vá, mundo afora, observando e aprendendo. Tire lição da vida alheia. Defeito visto ensina mais que elogio. E guarde silêncio: ouça e cale-se. Sempre que possível. Chamado a manifestar-se, comece por agir. Só dê opinião quando consultado. Se falar, fale afinado: na hora certa, sem fugir à medida do costume, no tom exato. Porque se replicarem, você fala mais alto, e domina a situação. Ninguém vence o cauteloso. Agora, em tempo de baile e de folga, não se faça de rogado: dance e cante. Obedecendo, sempre, ao compasso, atento aos costumes da sala. Uma coisa é certa: se o divertimento é bom, o trabalho é melhor. De experiência posso afirmar que o amor, o jogo, a comida e a bebida só enfeitam o mundo. O que dá sentido a tudo é o trabalho. Observe, por onde andar, como os homens e as mulheres trabalham. E chegará à seguinte conclusão: os mais felizes são aqueles que descobriram que o trabalho faz parte do dia, é tempero necessário à vida. Função natural leva ao amor, ao jogo, à comida e à bebida. Ainda aí, não se esqueça: toque afinado. O mundo é música escrita que você deve ler e interpretar. Prepare o fôlego, exercite as mãos e saiba usar os olhos. A vida é um dom. E viver, meu sobrinho, é uma vocação. 

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 42.

Folhas ao vento

Desde a Idade Média os corações apaixonados descobriram nos versos forma natural de expressão. Não é difícil comprová-lo. Mas, a despeito da generosa cumplicidade da poesia, "quase irmã do amor", os versos sujeitam-se, à revelia do sentimento, às emergências do acaso e da necessidade.
Desde o mood for love aos modos de amar, todas as gamas da paixão, com sua euforia e seus tormentos, chamejam ao calor da moda, ou de modismos eróticos, tanto como se deprimem à fria luz dos mitos freudianos.
No entanto, o que mais surpreende o leitor, enamorado ou não, é que a poesia nem sempre favorece a vida amorosa. E embora não se ouse afirmar que lhe seja nefasta, a aspereza do cotidiano se encarrega de despejá-la da vida e, muito mais frequentemente do que se crê, de separá-la do seu quase irmão, o amor.

QUEIROZ, Maria José de. Folhas ao vento. In: LEAL, Carlos. (Ed.) 21 histórias de amor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. p. 243.

Nó da história

Não convém ignorar, no nó da história, que em rede bem urdida as  malhas todas dependem umas das outras, em cadeia longa, interminável. E se os homens esquecem às vezes a sutileza do tecido, não a esquecem os tecelões, demiurgos implacáveis. No enredo da vida humana, não há fios livres. Nem autônomos. A perniciosa dinastia dos homens sós perdeu-se, faz séculos, na história.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 119.