sábado, 2 de junho de 2018

Ponto e contraponto



















Outros se mordem,
dilaceram-se.

Passeiam desalento
entre cardo e punhal.

Em cotidiano enleio
arrastam das calçadas
o conflito ao travesseiro.

Exaltam Ionesco
no mui digno parlamento
de lençol e almofada.

De luto vestem máscara e alma
no desempenho esmerado
de tragédia encenada
entre palco e bastidores:
escasso viver, muitos atos,
vida amarga, solidão.

Esse o honesto tributo à indiferença
em descompasso de canto e dicção.

Se há metais em voz alheia,
rebelde a toda descante,
que fazer desta harmonia
de tessituras afinadas
em acorde, clave e tom?

Que fazer das velhas pedras,
aves, rios e mosteiros,
entre outono e primavera cultivados?

Onde esconder sol e sombra,
de claro azul mediterrâneo,
Chopin, Georg Sand, Valldemosa,
prelúdios de tempo sepulto
e imagens ressuscitadas?

Onde guardar sonatas?
Onde ocultar auroras?
Onde aprender discórdias?
Como semear rancores
se só nos visita o soluço,
de funda emoção descalada,
quando, em fibra e memória,
céus distantes, infâmia rara
reintegramos alumbrados
na lembrança de fantasmas
e lares empoeirados? 

Que fazer do verso inédito,
tardiamente nascido,
para celebração da ternura,
do pranto e destino avaro?

Que fazer de nós
        tão distintos,
        tão iguais,
        tão esquivos,
        tão mortais?

Que fazer de passo e ritmo
de ciranda, cirandinha
que salta aos nossos pés
na inocência recuperada?

Que fazer de flor celeste
em jardim de terra exausta?
Que fazer da envergadura
do pássaro recriado?

Que fazer de tanto afeto
se nos devora o relógio
se não nos resta pretexto
para justificar atrasos
se nos perdemos em eco
e o que fomos
já não somos?

Que fazer de nós
se jamais regressaremos
ao ferro, à montanha e ao hábito?

Que fazer de nós?
Que fazer?
Nós?


Paris, 11-04-70

QUEIROZ, Maria José de. Exercicio de levitação. Coimbra: Atlântida, 1971. p. 65-68.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Vladslav Ostrov: Príncipe do Juruena, 1999


QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov: príncipe do Juruena.
Rio de Janeiro: Record, 1999. 303p.
 
No romance, Úrsula Bock, uma funcionaria alemã de uma firma importadora de madeira, aves exóticas e plantas ornamentais, apresenta ao leitor Vladslav Ostrov, um aventureiro russo de origem nobre que, entre riscos e desafios, emerge da história do século XX numa biografia memorável. Ao emigrar para a Argentina, Vladimir salva bens de família que o possibilitam ser acionista de um banco polonês em Buenos Aires. Da Argentina à Colômbia e depois para o Brasil, na região amazônica, esse homem culto, de posses e de boa educação, faz da selva o seu reino e entre a população brasileira estabelece seus negócios e vive amores.

“Um amigo meu, dado a esoterismo e fenômenos parapsicológicos, não teve dúvida em classificar esse decalque inexplicável de Olov a Ostrov, ou vice-versa, como "fulgurações da imaginação". Quando lhe perguntei o que entendia por isso, ele me respondeu que são como spots ou clarões que nos põem em contato com tudo o que se passa no universo. Uma espécie de sexto sentido, ou intuição criadora, que nos transporta a formas de conhecimento total. No entanto, imperfeitos que somos, não atingimos o absoluto: nosso conhecimento padece intermitências. Não há revelação total, mas parcial. Por isso, talvez fosse mais correto falar de relâmpagos de vidência ou breves iluminações. A criação do príncipe Olsztyn, personagem de ficção, entretanto vivo em alguma parte do globo, seria um excelente exemplo de como isso ocorre: só me haviam chegado, mercê de breves iluminações, certos episódios de sua vida. O demais continuara oculto no magma universal. Quando se rompe, em súbitos clarões, o véu que o encobre é que acontecem as chamadas "fulgurações da imaginação". (p. 33).


“Era amor à primeira vista. Disso eu não suspeitava. Ainda não. Acreditava-me infenso a tais fraquezas. Cultivava, desde os últimos anos na Argentina, uma misoginia mal resolvida. Aborrecia-me o eterno feminino. Mas Brigitte não era como as demais mulheres... Descobri, passado o frenesi da paixão, que não só o eterno feminino existe, sim, como uma mulher é todas as mulheres. E talvez seja isso o eterno feminino. Quem conhece uma, conhece todas elas. A paixão é que é diferente. É o sujeito que reinventa o objeto amado. Embora ele seja sempre o mesmo...” (p. 84).

“A arte da sedução não é tão simples quanto se imagina. Principalmente se o rival, mantido à distância, participa da intriga e contribui para o seu bom êxito. Claro que houve finta. E com a cumplicidade da vítima. Para que a honradez e os bons princípios prevalecessem. O cornudo saiu invicto do episódio. E a bela lituana prestou valente serviço à causa nazista. Ela sabia que o amor, em tempo de guerra, também é arma. E usou-a com mestria. Para meu prazer. Nosso, talvez... Não, não quero crer que Hitler interferisse no arrebatamento da sua entrega. Nem Goering dela exigiria tamanha assiduidade nem tais caprichos de devoção a Eros.” (p. 85).

“Amargurada, desci à Amazônia com uma frase de Cocteau na cabeça: "J'ai mal d'être homme." Também eu carrego como peso a dor de pertencer à humanidade. Como é que pode haver tanta gente ruim no mundo? Será que pertencemos, todos, ao mesmo gênero humano? Ao fazer essa pergunta a Ostrov, já em convalescença, em casa, ele me respondeu: — Tenho minhas dúvidas. Não conhecendo a frase de Cocteau, contentava-me em repetir o verso de Neruda – "Sucede que me canso de ser hombre" –, bem próximo, no seu pessimismo, da frase que me citou. Mas não creia que alguém escape da miséria humana. Ninguém é perfeito. A ruindade, os vícios, o crime são nosso patrimônio comum.” (p. 159).
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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Sobre os rios que vão (1990)


QUEIROZ, Maria José de. Sobre os rios que vão.
Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. 338p.

O romance Sobre os rios que vão narra a história de uma família de origem judaico-búlgara no interior do estado de São Paulo. O enredo gira em torno do jovem Joel Levi que, para tentar burlar os impasses da identidade e da memória judaica, troca seu nome para Jari Leite. Estão no horizonte dessa trama a sua relação com o passado de sua família e, por extensão, com a sua herança sefardita. Babilônia, nessa história de exílio, é, no Brasil, metafórica, ou seja, corresponde aos vários locais onde suas personagens vivem suas histórias: a cidade de São Paulo, após a imigração de Fatuel, o pai de Joel; o interior paulista, São Godofredo, onde ele constituiu família e se tornou um luthier; para Joel, também a cidade de São Paulo de seus estudos e do tio Mattei, depois sua experiência na Alemanha e na França. Assim, essa “Babilônia” transmuta-se num lugar imaginário, na verdade um estado de espírito no qual lamentam-se os males da ausência.

“Sem meios para me instruir, aprendi, em casa, com meu pai, que é marceneiro, a trabalhar a madeira. E o que mais queria era possuir um violino. Meu sonho era ser violinista. Deus não permitiu que eu o realizasse. Não me queixo. Toco um pouco e transferi para a minha modesta fábrica de instrumentos a paixão que sempre senti pela música. Acho que poder fabricar o próprio instrumento aumenta o prazer de tocá-lo. A minha impressão é que ao executar uma peça eu retiro de dentro do violino os sons e os harmônicos que eu mesmo pus lá dentro.” (QUEIROZ, 1990. p. 102).

“Nunca houve, nem haverá, uma cidade como Berlim. Tive a impressão de que estávamos na véspera do fim do mundo. Abraham me repetiu um dia a frase de uma amiga sua: "Aqui, uma mulher custa um cigarro e um quilo de pão, um milhão de marcos". Mas não era só a mulher: o homem também valia pouco. O que custava caro era a comida. Num cartaz de cabaré, li e anotei esta frase formidável: "Berlim, teu parceiro de dança é a morte". E a morte veio com a guerra. Tudo o que aconteceu depois você já sabe. Faz parte da história: os conflitos entre nazistas e comunistas, os desfiles de rua e o fatídico 10 de maio, quando Goebbels e os estudantes lançaram ao fogo milhares de de livros. Quando a Alemanha foi invadida eu já estava no Brasil.” (QUEIROZ, 1990. p. 173).

“Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...” (QUEIROZ, 1990. p. 336).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Joaquina, filha do Tiradentes, 1987, 1991, 1997

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes
São Paulo: Marco Zero, 1987. 297p. 
(Inspiração Liberdade, Liberdade, que estreou dia 11 de abril de 2016, na Globo)
QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. 258p. (1991)
 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 356p. 
(Versão Integral com posfácio da autora)

Em Joaquina, filha do Tiradentes, Maria José de Queiroz constrói, além de um requintado painel da cartografia de Minas Gerais, uma rigorosa reinvenção da vida cotidiana do século XVIII por intermédio da narrativa da filha bastarda de Tiradentes. Artista e artesã da palavra, como salientou Pedro Nava, a escritora deixa confluir ficção e história em sua escrita. Assim, ela arma, junto ao episódio da Inconfidência Mineira, pano de fundo da narrativa, um texto outro que põe em evidência o melancólico discurso da herdeira do “sal e da infâmia” do condenado de Vila Rica. Joaquina, alheia ao jogo de fuga, talvez possível para o esquecimento do nome do pai, aparece no cenário da literatura brasileira pelas mãos hábeis da romancista. Chama a atenção do leitor a composição dos ambientes, os pormenores evocados pela memória da narradora – “pedrinhas, seixos, pepitas de ouro, diamantes e outras riquezas” – todas essas coisas roídas pelo cupim do tempo, filigranadas pelo esquecimento da história. No romance, a filha de Tiradentes deixa de existir numa nota quase invisível nos Autos da Devassa e vem, ficcionalmente, seduzir o leitor numa apaixonante narrativa. Esse romance histórico perfila-se sob a égide de um percurso consciente e intelectualmente elaborado da autora que insinua uma constante tensão entre a ficção e a história. O que poderia ser uma lacuna intransponível torna-se, assim, um tecido cuja intrincada disposição dos fios aponta para uma trama que privilegia o passado de Minas como um tempo propício à invenção e à construção ficcional. A história dos sentidos, dos cheiros, do olhar torna-se, também, em Joaquina, filha do Tiradentes, belíssima narrativa de dor e melancolia. Tudo muito bem tramado, à luz hesitante da candeia da História.

Trailer do documentário Maria José de Queiroz: artesã da palavra, 2003, de Lesle Nascimento: https://www.youtube.com/watch?v=Vj6XSXKcRWM&feature=youtu.be

“Sei de memória, não só a condenação mas também as inesgotáveis formas por que se expressam o desprezo, a humilhação e a desonra. Conheço as mentiras da história, a hipocrisia dos patriotas, a peçonha das letras escritas, os rumores malignos, o escárnio e o medo. Aprendi, desde menina, que a vergonha da origem bastarda fere menos, muito menos, que a infâmia decretada por sentença e consagrada pela fraqueza dos covardes. Não, o tempo não lhe consumiu o corpo amaldiçoado. Vejo-o agora, vejo-o aqui. E sua cabeça, exposta ao opróbrio, seu rosto – tão semelhante ao meu, inicia a eternidade da pena crismando, no golpe de ódio do poder, o gesto de misericórdia do carrasco. Vejo-me nele. E ele, em mim, abre os olhos para a vida e para a desgraça que nos cerca. Um dia, quem sabe?, ele os abrirá para a glória... De ignomínia em ignomínia, nada me salva: nem o futuro nem a gratidão da pátria. Suas palavras talvez pudessem resgatar-nos – a mim e a minha mãe – do frio do esquecimento; ele, contudo, jamais as proferiu. Nada nos resta. Nada me resta. No espelho do quarto, nas águas do rio, nos dedos que me apontam, o seu rosto me persegue. Sempre. E esse silêncio! No entanto, as palavras... De que valem as palavras? O que dele me ficou, deveras, foi a infâmia. No abandono das horas tardias, quando a paciência esgota, cansadamente, a resignação e a calma, é o sangue que me fala. A ameaça que vem de fora, dia claro, nos gestos obscenos, nas vozes afiadas, troca-se em tortura: sou eu, noite adentro, meu verdugo. E, de mim, já não fujo: recolho-me no meu corpo, duplamente condenado. A infâmia que mora no meu ventre conspira contra todos nós. Minha alegria é o silêncio das coisas quando a escuridão noturna adormece a vizinhança.” (QUEIROZ, 1997. p. 9-10).

“Nada passa nesta cidade. Tudo é sempre igual: as pedras da rua, a fachada das casas, as pontes, os chafarizes, as cruzes, os oratórios... Do Caquende até o alto das Cabeças, as caras são as mesmas, desde o tempo do Alferes. Só no Pilar vejo gente estranha: duas ou três pessoas chamam a atenção de todo mundo. Nas procissões, qualquer cara nova é olhada de través. E, agora, sobra, para nós também, esse olhar atravessado. Tem gente que bem que gostaria de me ver enforcada, na mesma corda que enforcou o Alferes. Como essas Pilatas.” (QUEIROZ, 1997. p. 18-19).

“Se não temos ouro... Que podemos oferecer à Soberana para os seus alfinetes? A cabeça do Alferes vale ouro. Muito ouro! Está cheia de ouro! As fundições do Reino vão fundir alfinetes de ouro para a Soberana. Para quê moedas? Com o ouro da cabeça do Alferes vão fundir alfinetes, infinitos alfinetes. Todos de ouro. A Soberana terá alfinetes para a sua cabeça, para as suas almofadas e para o seu coração. Sete alfinetes de ouro atravessam o seu coração. Ou o meu... Nem sei mais. Quanta desigualdade!” (QUEIROZ, 1987. p 155).

“Tivemos uma boa ceia: galinha cozida, toucinho, feijão e farinha de milho. A provisão de queijo, da fazenda de D. Rita, começou a ser servida. E o café, tão raro, como já sabíamos, foi bebido com o maior prazer. O telheiro, apesar de espaçoso, só nos defendia do vento, da chuva e das onças e lobos. Armaram-se redes e catres, acenderam-se fogueiras do lado de fora. A fumaça nos cegava a todos.” (QUEIROZ, 1987. p. 160).

A pouco e pouco o sol apareceu. E o calor começou. A subida era difícil. Durante umas duas léguas, num caminho áspero e escorregadio, só fizemos subir. Quando chegamos ao topo do monte - o chapadão da Matutina –, pudemos descortinar toda a estrada feita, desde o arraial onde pousáramos até as montanhas mais distantes, que encerravam, em círculo, o imenso vale.
— Não lhe disse que a dor passaria quando estivéssemos na estrada? Não há dor que resista a essa beleza, Joaquina.” (QUEIROZ, 1987. p. 161).

“Estendi as peças de roupa no quintal e continuei a abrir arcas e canastras. Deixei por último a canastra dos livros e papéis. Encontrei dois cadernos em que começara a rabiscar as primeiras letras, um caderno de Caligrafia, um livro de Gramática e um de História. Todos destruídos pelas traças. Havia ainda um embrulho com os dizeres: Para Joaquina, filha de Joaquim José. Abri-o. Mais livros e papéis. Os livros: Tratado de cirurgia dos pobres, Tratado das febres intermitentes, Elementos de medicina prática, Dicionário Francês e Latino de Medicina, Manual do moço praticante de cirurgia, Segredos das Artes e Ofícios, Conhecimento prático dos remédios, Enfermidades dos exércitos, Compêndio de Botânica, Conservação da saúde dos povos, Coleção dos remédios fáceis e domésticos, Compêndio de História Natural, Tratado de Mineralogia. Todos intactos. O papel, tratado com verniz e cera, protegera-os contra as traças e o cupim.” (QUEIROZ, 1987. p. 191).

“O Mal só vem daqueles que nada fazem por mal. É sempre assim. Enfim, nada mais sei para ensinar a você. Sua educação está terminada. E sua instrução já é de sobejo. Você pode levantar os olhos. Pode levantar a voz. Eu estou cansada. Muito cansada. Passei a vida com os olhos baixos. Conheço as pedras das calçadas de Vila Rica e de Antônio Dias. Conheci as tábuas e o chão da casa do Alferes, da casa da minha mãe na Rua da Ponte Seca, da fazenda do Senhor Anacleto e de todas essas casas por onde passamos. Isso me pesa. Só levanto os olhos quando a revolta arrebenta. Só levanto a voz quando me vem vontade de ferir e matar.” (QUEIROZ, 1987. p 196).

Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

sábado, 13 de janeiro de 2018

Homem de sete partidas, 1980 , 1999.


QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 213p.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record. 1999. 240p.

Nesse romance, o jovem mineiro, Bernardo, busca refazer os caminhos de um tio, o inadaptado e aventureiro Euclides, em terras hispano-americanas. Assim, a viagem que empreende acaba por ser uma tentativa de desvendar a vida do parente andarilho, mas também a sua própria. Por certo, é, ainda, a viagem do leitor por um mapa aberto da América Latina. Para Otto Lara Rezende, o convite à viagem, ou à leitura, funde-se à certa vocação de felicidade, inerente ao humano. Feliz, assim, é o homem de sete partidas, aquele que se liberta de uma rotina sufocante e/ou de uma família opressiva. A ficção, pois, ganha asas e “sobrevoa as montanhas e sai pelo mundo”, fazendo com que o cosmopolitismo, presente na narrativa, possa ser visto “como uma espécie de libertação das amarras que cercam e que reprimem o cotidiano mineiro, ou belo-horizontino.”

“Ele já se encontrava na  Colômbia. Muito didaticamente me falava do engano das suas "invenções". Mas não diminuiu, aos meus olhos, a importância da paisagem desconhecida. Alargou-se, em considerações pitorescas, acerca das trepadeiras, das borboletas, dos insetos, das orquídeas, do mata-pau, das palmeiras e da vitória-régia. Tudo quanto de belo se encontrava pelo caminho parecia-lhe, confessava cioso da sua autoridade, compensar brilhantemente a ausência de meia dúzia de leões, girafas ou elefantes, animais que não tinham nem a metade do encanto das grandes famílias ululantes de macacos e micos, de papagaios, tucanos e garças, de jacarés, serpentes, sapos, tartarugas. Mostrei a mamãe, altaneiro,  que o engano do tio fora até providencial: era muito melhor ter um peixe-boi, um pirarucu ou uma sucuri que ter duas centenas de hipopótamos.” (QUEIROZ, 1980. p. 29).

“Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes. É necessário saber escolher. E bem. Nada de insegurança. Ao verdadeiro homem se conhece nos momentos de decisão. E tomada a decisão, aquele que tem fibra arca com as consequências. Chegado o momento, assuma suas responsabilidades. E não peça licença à sua mãe, nem ao seu pai, nem ao seu tio, nem ao cura nem ao delegado para viver. Viva a sua vida. Seja dono do próprio nariz. Se quebrá-lo, é seu. Ninguém tem nada a ver com isso. Homem de nariz quebrado, continua homem. E nariz a gente conserta. O que não se conserta, nem se remenda é a dignidade. Não está na cara, como o nariz. Apesar disso, é visível. E se estampa, com muita manha, nos olhos e nas vozes dos outros. Até no escuro. Convém, portanto, tratar de conservá-la. Vá, mundo afora, observando e aprendendo. Tire lição da vida alheia. Defeito visto ensina mais que elogio. E guarde silêncio: ouça e cale-se. Sempre que possível. Chamado a manifestar-se, comece por agir. Só dê opinião quando consultado. Se falar, fale afinado: na hora certa, sem fugir à medida do costume, no tom exato. Porque se replicarem, você fala mais alto, e domina a situação. Ninguém vence o cauteloso. Agora, em tempo de baile e de folga, não se faça de rogado: dance e cante. Obedecendo, sempre, ao compasso, atento aos costumes da sala. Uma coisa é certa: se o divertimento é bom, o trabalho é melhor. De experiência posso afirmar que o amor, o jogo, a comida e a bebida só enfeitam o mundo. O que dá sentido a tudo é o trabalho. Observe, por onde andar, como os homens e as mulheres trabalham. E chegará à seguinte conclusão: os mais felizes são aqueles que descobriram que o trabalho faz parte do dia, é tempero necessário à vida. Função natural leva ao amor, ao jogo, à comida e à bebida. Ainda aí, não se esqueça: toque afinado. O mundo é música escrita que você deve ler e interpretar. Prepare o fôlego, exercite as mãos e saiba usar os olhos. A vida é um dom. E viver, meu sobrinho, é uma vocação”. (QUEIROZ, 1980. p. 42).

“Euclides, vivo, incomodava a todos. Tivera êxito nos negócios, gozava de excelente fama entre as mulheres... que mais queria? É isso que importa! Nadie o entendia. Ele inquietava e escandalizava. Suas ambições escapavam ao homem comum. À força de agitar-se, de agir, de angustiar-se, foi longe demais: alcançou o proibido. Sempre me repetia que o seu maior desejo era conhecer seus própios límites: queria saber até onde iria. Em tudo. Falta sempre alguma coisa ao homem que jamais experimentou essa vertigem, confessou-me certa vez. Nesse dia, ele chegara a um dos seus abismos: o da fúria homicida. Um dos seus empregados abusara de uma indiazinha. Euclides foi procurá-lo: ele tinha de reparar o crime. O empregado, cínico, replicou que apenas se antecipara ao pai, aos irmãos ou à indiada suja que, em obediência ao hábito, se encarregariam de fazê-la mulher. Ela, índia, devia-lhe um privilégio: ele, branco, dera-lhe a provar o gosto do sexo de uma raça superior. Euclides, fora de si, atirou-o ao chão. Ao vê-lo por terra, seu primeiro ímpeto foi matá-lo, à frio. Quase sucumbiu à tentação. Era o seu límite. Vencida a vertigem, pôs o revólver na cintura. A mão direita em garra, presa ao pescoço do homem, levantou-o para aplicar-lhe punição mais eficaz: com um pontapé vigoroso, privou-o, vitaliciamente, de iniciar nos mistérios do sexo índias e brancas, sem discriminação de raça.” (QUEIROZ, 1980. p. 195-196).

“A alguns metros de distância da cama, bem à vista, o mapa da América do Sul, pontilhado de alfinetes de cabeça redonda, colorida, sugeriam o roteiro ideal. As amazonas, o império incaico, o ouro, a Conquista, a floresta, o rio-mar nada mais eram que território imaginário, de fronteiras limitadas. [...] Rosto sem traços, personagem de morte obscura, titio tomara caminho ignorado, fundindo-se às sombras da noite amazônica. Traição grande, enorme, a que sofri. Por que não deixou para desaparecer depois da nossa viagem?” (QUEIROZ, 1980, p. 35).

“Quando contei à comadre Elvira que os meus escrúpulos de consciência não me deixavam dormir, ela não se admirou. Era pior que eu. Em pecado grave, mortal, não amamentava os filhos. Temia que Deus punisse o inocente para castigá-la. Perguntei-lhe de onde tinha tirado isso. Da Bíblia. Da Bíblia? Pois não está escrito que "Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados"? Fiquei horrorizada. Não sosseguei enquanto não obtive do padre Arduíno uma boa explicação para a sentença bíblica. E corri a participar à comadre que podia amamentar o coitadinho do afilhado sem susto: as uvas verdes nada tinham a ver com o leite materno. Helena, sua irmã, me contou que Elvira tinha mania de pecado.” (QUEIROZ, 1980. p. 65).

“Vinte e três anos de convivência com a floresta, com as cobras, os insetos, as febres, as piranhas e... com a morte. A morte sem disfarce. Quando ataca, ataca sem piedade: de frente. Só o homem, na selva, ataca por trás, de emboscada. Só o homem é hipócrita e mal-intencionado. Dos bichos e das árvores não tenho queixas. Marcaram-me fundo. Mas combatemos combate leal! Hay que temer a los hombres! No entanto quando se tem um amigo... A selva fortalece e consagra as amizades. Ali, sim, é que a fidelidade do amigo se põe à prova. O verniz da civilização não tem razão de ser. Supérfluas nos parecem, e falsas, as fórmulas de polidez, os elogios, os agrados, a solidariedade de fachada. A floresta, testemunha silenciosa, exige atos e não palavras.” (QUEIROZ, 1980. p. 86-87).

“Sem uma tribuna de papel, como vê, ninguém aqui logra defender-se publicamente: palavra puxa palavra, às palavras se seguem as ações, à violência do verbo, que esgrimem uns contra os outros, sucede a violência física, ou a violência propriamente dita que é, hoje, uma instituição nacional. Seu tio não estava preparado para viver num país como o nosso. Ainda que os seus ideais políticos se abrigassem sob a bandeira negra do anarquismo, derivavam, em linha reta, do evangelho de Tolstoi. Nunca li Tosltoi. Mas era o que ele proclamava. Sua estatura, seu vozeirão, seus modos agressivos, seus protestos contra a injustiça e contra a opressão não abrigavam ódio: eram fruto de amor, provinham do sentimento de fraternidade universal. Detestava a Igreja, isso sim, e abominava a política e o poder.” (QUEIROZ, 1980. p. 121-122).

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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

Invenção a duas vozes, 1978



QUEIROZ, Maria José de. Invenção a duas vozes.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 235p.

A invenção da vida e a distância entre o sentir e o dizer alcançam ponto máximo no enredo desse romance. Presos, durante o carnaval, ameaçados por ladrões, no espaço limitado de um banheiro numa mansão na Pampulha, em Belo Horizonte, um casal discute a vida e as representações sociais a que estão presos. A máscara e a tensão familiar são, no texto, desveladas na medida em que se encena a brutal violência a qual estão submetidos. A narrativa, ora contida, ora censurada, deixa entrever, no espaço reduzido e íntimo, o medo e a proximidade constrangedores que põem em cena as contingências dos dejetos, dos restos, das relações amorosas e sociais.

“Os passos prosseguem na busca ansiosa. Devem estar no nosso quarto de dormir. Perfumes, vestidos, ternos, sapatos, bolsas, alguma joia desgarrada (quase tudo está no banco), a televisão portátil, o relógio de cabeceira, os nossos relógios de pulso... Tudo inútil. Metade da vida perdida em amealhar, amealhar... O horror ao amigo do alheio. O verbo ter conjugado com ansiedade, temores, calafrio, no olvido dos verbos ser e estar. A propriedade é um roubo, sim. A nós mesmos. Transferimos às coisas a nossa residência: passamos a hóspedes interinos dos objetos. Por isso, ao perdê-los, nós os acompanhamos em degredo. Preciso convencer-me. À minha integridade basta-me, com sobejo, a identidade postiça — nome, estado civil, nacionalidade. Tudo mais se sujeita à irregularidade do verbo ter e a todos os desastres da propriedade e da posse, jamais bem guardadas. O melhor, acredito, seja colecionar lembranças. Para que a memória as afeiçoe a seu grado, com direito a retoques e acréscimos, se necessário. Álbum de poucas páginas, sem fotografias e sem notas.” (QUEIROZ, 1978. p. 25).
 
“Por que a palavra ríspida, a ironia venenosa e a impaciência? Por que o desabafo de desgosto? Que motivo me afasta das pessoas? A abundância de vida, acredito. O tumulto dos sentimentos exteriorizado em signos visíveis e audíveis, nem sempre agradáveis. É a imagem que me comove – o que fica como soma e síntese, fusão final. A face em que se confundem tiques, expressões e hábitos. Só a separação, a distância e a morte nos oferecem a pessoa na sua integridade, no seu retrato total – de corpo e alma. Salva dos desnorteios da razão, das bruscas mudanças de comportamento, ela – a pessoa, aparece-nos finalmente aliada à sua personagem. É a eternidade que comparece no exercício repetido a que a memória nos obriga. A presença, na sua solicitude importuna, na sua riqueza compósita, dispersa e dissipa. Ameaçadoramente subversiva, ela põe em perigo a estabilidade, o equilíbrio. Toda presença é conflito. O físico perturba, confunde, embaraça. Submete-nos a uma constante revisão de conceitos. Se tentamos guardar figura que o represente, saímos logrados: fluida, tremida, indistinta, ela assemelha-se ao vulto da fotografia fora de foco. A ausência, pelo contrário, concentra, reúne, aglutina. E só a morte – ausência definitiva – confere aos monumentos, às estátuas e aos seres humanos as dimensões da imortalidade. Assim entendo o verso de Mallarmé "Tel qu'en lui même enfin l'éternité le change", a propósito de Edgar A. Poe. O apelo à sacralização instaura no nosso íntimo o gosto da perfeição, o capricho na caracterização de cada gesto e de cada palavra, dentro da continuidade do vivido. Do já vivido.” (QUEIROZ, 1978. p. 106).

“Ninguém desce impune do pedestal doméstico, pois a descida supõe perda de privilégios. A conservação do poder exige talento, força e obstinação. Mas isso não é tudo. O chefe depende da docilidade dos comandados. Num primeiro estágio. Com o passar do tempo ele deve contar com a adesão apaixonada. O poder exercido sem objeções e sem protestos, num vazio onde a voz do mando se prolonga em ressonâncias, torna-se intolerável." (QUEIROZ, 1978. p. 151).
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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG

Ano novo, vida nova (1978)


Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 1978. 107p.

O romance, em primeira pessoa, embora escrito em português, é quase bilíngue. Na trama, a personagem-narradora, Patrícia, uma mineira envolvida num caso amoroso com um francês, casado, reflete sobre a possibilidade de escrever sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês, confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias, especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte como a referência à culinária e à literatura.

“Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.” (QUEIROZ, 1978, p. 30).

“Que o novelo se desenrede. Sem concessões. Que a minha ficção, em vez de anular-me, me ofereça a possibilidade de encontrar-me. Mais: de melhor conhecer-me e de analisar-me. Uma espécie de ficção indefinida, entre dois planos, um real, vivido, e o outro imaginado. [...] Invenção e vida. Unidas pelo fio sutil da simpatia. É a história que está a programar o vivido. Não tenho, por isso, a impressão  de que o enredo se resolva no epílogo. Como se o tempo, circular, tudo recuperasse sob o signo das letras. Talvez, no momento da revisão do texto, ao chamar Clara, e não mais Patrícia à personagem, eliminando, sempre, a primeira pessoa do singular, eu possa dar à história selo definitivo, estável. Não sei. O que sinto, por enquanto, é que tudo isso não passa de uma restituição. Restituição do fictício à ficção. Se lograr realizá-la, convencendo-me da sua realidade, poderei desaparecer. Ficarei livre de Patrícia nomeando-a Clara.” (QUEIROZ, 1978. p. 62-63).

“A língua de empréstimo, mesmo aquela que se fala com fluência, e também com prazer, cansa ao fim de certo tempo. A inteligência desperta não pode ignorar, um momento sequer, a sintaxe, a morfologia, o vocabulário. Regras e normas constantemente se impõem. Não é só. Para chegar a falar correta e correntemente, vivemos, em nós mesmos, a língua estrangeira e constantemente a assimilamos, num processo jamais concluído de reelaboração do aprendizado. À língua materna, tal não acontece. Corre livre o pensamento. Deturpa-se a pronúncia, infringem-se leis e uso. Nada importa. É patrimônio próprio. Infenso à dilapidação. E mais: bem ou mal, sempre nos fazemos entender. O medo da censura, o autopoliciamento, o respeito ao idioma que não é o nosso favorece a tensão. Ninguém se sente impune ao pronunciar uma língua estrangeira. Isto é, aqueles que aspiram a uma certa ideia de correção de linguagem. Fluência significa esforço, concentração, vigilância. É fato: pode-se pensar numa língua estranha à nossa. Esse, o grande privilégio dos que dominam um novo idioma. Pode-se, até, sonhar em francês, em russo, em javanês. No entanto - a encontrar-se aí a essência da função fabuladora –, só se fala sem pensar a língua materna. É isso o que ela guarda de próprio e de misterioso.” (QUEIROZ, 1978. p. 104-105).

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Lyslei Nascimento
Faculdade de Letras, UFMG