domingo, 26 de fevereiro de 2017

Limites

Euclides, vivo, incomodava a todos. Tivera êxito nos negócios, gozava de excelente fama entre as mulheres... que mais queria? É isso que importa! Nadie o entendia. Ele inquietava e escandalizava. Suas ambições escapavam ao homem comum. À força de agitar-se, de agir, de angustiar-se, foi longe demais: alcançou o proibido. Sempre me repetia que o seu maior desejo era conhecer seus própios límites: queria saber até onde iria. Em tudo. Falta sempre alguma coisa ao homem que jamais experimentou essa vertigem, confessou-me certa vez. Nesse dia, ele chegara a um dos seus abismos: o da fúria homicida. Um dos seus empregados abusara de uma indiazinha. Euclides foi procurá-lo: ele tinha de reparar o crime. O empregado, cínico, replicou que apenas se antecipara ao pai, aos irmãos ou à indiada suja que, em obediência ao hábito, se encarregariam de fazê-la mulher. Ela, índia, devia-lhe um privilégio: ele, branco, dera-lhe a provar o gosto do sexto de uma raça superior. Euclides, fora de si, atirou-o ao chão. Ao vê-lo por terra, seu primeiro ímpeto foi matá-lo, à frio. Quase sucumbiu à tentação. Era o seu límite. Vencida a vertigem, pôs o revólver na cintura. A mão direita em garra, presa ao pescoço do homem, levantou-o para aplicar-lhe punição mais eficaz: com um pontapé vigoroso, privou-o, vitaliciamente, de iniciar nos mistérios do sexo índias e brancas, sem discriminação de raça.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999. p. 220.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O canto do cisne



Não, o cisne não canta
ao aviso da morte.
Nenhuma voz anima
o seu último silêncio
na solidão das águas.
No bico secreto,
com timbre preciso,
o peixe ágil,
o lodo, o verme.
No momento inacessível
em que os juncos adormecem,
o seu pescoço se alonga
à procura de outra forma.
É o cisne o seu próprio canto
no risco definitivo
do corpo sem metáfora.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra Editora, 1978. p. 68.