terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Desde longe, na infância






















Elle a dû faire toutes les guerres
Pour être si forte.

Je l’aime à mourir...


Desde longe na infância,
dois talheres à mesa,
minha mãe à cabeceira,
voz pausada repetia:
“Temos teto e comida!
Isso basta!”

É a vida.
É o luto.
E ... por que não?
Isso basta...

Entre pêsames e abraços,
teve fim o cunhadesco:
na voz impiedosa
do tio cruel,
descobri que era órfã.

Restaram três avós
— Alcina, Joana e Mariquinha,
mais vô Solídio e vô Juca,
uma tia e três outras,
uma prima e quatro primos.

Veloz nos patins
e esperto no ludo,
o menino grande,
tio materno,
me vencia em tudo.

Não reclame!
A vida é combate.
Aprenda a jogar!
Livros não faltam.
Que mais quer?
O resto é o resto.
Deus proverá.

A tempo e hora,
livros nunca faltaram:
mais grossos a cada semestre,
a cada ano, mais caros.

Sempre só e sem socorro,
sem amigos nem amigas,
tudo vendo, tudo ouvindo,
a meu pai pedi em lágrimas
me acompanhasse vida afora,
me ajudasse e libertasse.

Sobrevivi.
Sobrevivemos:
ambas.
À rotina dos meses,
sobressaltos não faltavam.
Nem doenças, nem lágrimas.
Deus é grande!, proverá.

Os meses, a galope,
com seu rol de surpresas,
e a música, sempre a música,
seu fascínio e sortilégio:
“Decifra-me ou devoro-te”.

Enfrentei fuga e contraponto,
devorou-me a harmonia...
As letras se vingaram,
fazendo-me prisioneira
de códices e incunábulos.

O suor do rosto,
o sal do pão e os livros:
o trabalho e os livros,
diplomas e livros...
Livros e provas,
provas e teses,
concursos e concursos,
sessenta e quatro aulas
metidas numa semana...

Como se a eternidade fosse isso,
das seis às onze,
apenas isso,
entre muitas luas
e quatro estações:
trabalho e trabalho ...
e livros, e livros...

Num 31 de março,
à meia-noite me avisaram:
“As tropas descem a Mantiqueira!
Oh, menina!, corre pra casa!"

E o tempo passou.
Voando...
Simples e claro:
seis dias úteis,
o salário e o pão,
missa aos domingos,
revisão de provas,
editores e gráficos,
livros e mais livros,
leitores ariscos,
edições minguadas.

O direito de ir e vir,
fechar portas e janelas,
fazer malas, muitas malas...
Partir.
Deus seja louvado!

O resto?
Pedra nos rins, costela quebrada,
artrose, osteoporose, catarata,
angina e enfarto...

Quem escapa de doença?
Qual nada!
Dá-se um jeito!
Só não há jeito
nem cura, para a morte.
Ou... olho furado!
Deus é pai...
Isso passa!

E passou.

Fomos vivendo:
o piano, o aperitivo sonoro,
dois talheres à mesa,
flores no jardim,
nêsperas anunciadas.

O Brasil é grande!
O horizonte, largo...
É hora de mudar!
Os livros não respondiam
à urgência da partida:
uma biblioteca inteira,
coleções de revistas,
tudo passa a outrem
ou a outros....
Tudo passa.
Que fazer?
A hora era aquela:
da noite para o dia,
papéis e papéis,
traças e tralha,
o coração aos pulos,
o piano suspenso no ar...
Paciência...
Deus proverá.

Ano novo, casa nova,
finestra sul mare.
Dois talheres à mesa...
E mais um e mais dois...
Novos amigos,
livros e livros,
Nava, Drummond, Afonso e Alfonsus,
Mário, Cyro e Murilo ...
Torre de papel ao sabor das palavras:
Plínio em prosa e verso — o Sabadoyle

Os anos passando
o tempo encurtando,
a Indesejada à porta.
O alarme.
Mas... Deus é Deus!
Vencemos o Cabo!

A Indesejada não desiste:
apenas adia o golpe fatal.
Assepsia completa.
Um talher à mesa,
sussurros pela casa:
contam-se gotas e segundos.
A vida escassa,
se mede, se apalpa
e deixa-se auscultar
no tronco descarnado:
pele e ossos. Mais ossos que pele,
o olhar fixo, a boca selada.

Já não vivo em mim.
O ano passa...

Quando o sopro se retrai.
o pulso se arrasta,
a vida bate em retirada:
soberba e triunfante,
a Indesejada, de alcateia,
me arranca,
entre dois suspiros,
metade da alma.

Perdi meu rumo e meu caminho,
minha literatura e minha música,
meu alfabeto e minha pauta,
todas as árias, todos os enredos,
os lieder de Schubert...
todas as canções de Duparc...

Todo es polvo, es sombra, es nada.

Paris, outubro 2009.

QUEIROZ, Maria José de. Desde longe. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. p. 22-28.