sábado, 22 de outubro de 2016

Os bárbaros de hoje

Numa posição privilegiada, a dois passos da ponta extrema da Europa, a península ibérica representaria papel preponderante na hegemonia política do mundo. Imantada pelo fascismo ou pelo comunismo, arrastaria, fatalmente, o país vizinho, Portugal, o que bastaria para perturbar o equilíbrio de força e poder entre as "grandes nações". Foi o que aconteceu. Decididas a dirigir o curso da história no século XX, dividiram entre si o império do mundo. Feita a partilha, cada qual para o seu lado, o fim do século assiste, tal como ocorreu a Roma, à desintegração, às invasões bárbaras, ao derramamento de sangue... Não há mesmo nada de novo sob o sol... Os bárbaros de hoje são os turcos, os africanos, os albaneses...

QUEIROZ, Maria José de. Vladslav Ostrov, o príncipe do Juruena. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 174.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Três mulheres
















Vil e cuidosa espera!

Enovelam-se ausências
na tela bem urdida.
Selam-se lábios e ouvidos
no serviço das mãos,
de esperto e aplicado ritmo.

Para Ulisses, o barco,
todas as tentações do mar
e a sedução das sereias
no eterno convite da distância
e no apelo do vento.
Para Penélope, agulha e silêncio:
meses e anos
de entretido e complicado enredo.
No labirinto de longos fios:
idas e voltas, fundos suspiros,
nenhuma surpresa,
nenhum risco.

O heroísmo navega
longe de linhas e rendas
olhos presos ao infinito.

Vil e cuidosa espera!

Em tinta e letra
o fogo se converte.
Na página branca e fria
lavram labaredas:
sem pudor nem comedimento
porque o resto (se o sabemos!)
é silêncio.
Nas cartas sem resposta,
no amor sem endereço,
o alívio e a pena.

Vil e cuidosa espera!

Na praia se levantem fogueiras,
de vivas e altas chamas,
nelas se lancem lembranças,
ternura, vulto e nome.

E ao largar da nave
Enéias não mais veja
pira a declamar-lhe afeto
sem razão e sem pretexto.
Dido soberana,
olhos enxutos, morto anseio,
no ar escreva adeuses
e ao mar entregue despojos
do amor vivido - cinza breve.

Paris, 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de fiandeira. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1974. p. 32-34.