sábado, 26 de dezembro de 2015

Os livros do Alferes


Estendi as peças de roupa no quintal e continuei a abrir arcas e canastras. Deixei por último a canastra dos livros e papéis. Encontrei dois cadernos em que começara a rabiscar as primeiras letras, um caderno de Caligrafia, um livro de Gramática e um de História. Todos destruídos pelas traças. Havia ainda um embrulho com os dizeres: Para Joaquina, filha de Joaquim José. Abri-o. Mais livros e papéis. Os livros: Tratado de cirurgia dos pobres, Tratado das febres intermitentes, Elementos de medicina prática, Dicionário Francês e Latino de Medicina, Manual do moço praticante de cirurgia, Segredos das Artes e Ofícios, Conhecimento prático dos remédios, Enfermidades dos exércitos, Compêndio de Botânica, Conservação da saúde dos povos, Coleção dos remédios fáceis e domésticos, Compêndio de História Natural, Tratado de Mineralogia. Todos intactos. O papel, tratado com verniz e cera, protegera-os contra as traças e o cupim. 

QUEIROZ, Maria José de. Joaquina, filha do Tiradentes. São Paulo: Marco Zero, 1987. p. 191.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Lisboa



Ponte alta sobre o Tejo
lembra a América de Alcatraz,
Califórnia do Pacífico,
Golden Gate, Sausalito.

Bem depressa nos desmentem
braços abertos, mãos em palmas:
o Cristo anuncia outra língua,
outra crença, outros ritos.

O Tejo deriva-se lento,
e a medo chega ao Restelo
onde se ouviu, faz tempo,
a voz grave de um velho.

Lisboa se aquece ao sol.
Seu casario colorido, seus tetos encarnados,
cruzes, igrejas, o forte, a Mouraria
refilam seu melhor fado:
tão menina, adolescente,
Lisboa ensina juventude
a Madrid, Paris e Roma.

Do Marquês aos Restauradores
a verdura se estende:
copia, em beleza,
mosaicos de inspiração romana.

Na curva do caminho, o Rossio.
Novos vencidos da vida,
hippies de todo o mundo,
pés descalços e sujos,
indiferentes ao espanto
e ingênua modéstia lusa,
sugerem crônicas, inspiram sociologia,
no desprezo de leis, normas e uso.

Há quem acredite no fado
e vá ouvi-lo na Alfama;
porém, Lisboa, a verdadeira,
(me disseram)
prefere cantares de amigo
e trauteia canções galegas.

No Campo Pequeno
o touro se agarra à unha.
A corrida espanhola,
de tradição sangrenta,
novas artes simula
e em "enforcado" se torna,
enhorabuena,
sem sacrifício cruento.

Em Lisboa sobre lo ler
deitam-se barcas ao mar.
Se voltam, nunca se sabe
("- Ai o meu rico homem!
o meu filho, que o não
torno a ver."),
mas quando voltam
há velas e Bendito
em todos os lares.

De Lisboa sobre lo mar
partem navios,
carregados de saudades.
Se voltam, nunca se sabe,
mas quando voltam
há que celebrar:
vinho verde, bom peixe, bom cozido
saúdam o filho pródigo
que fala francês, ou inglês,
com sotaque saloio, genuíno.

Lisboa ancorada à porta do continente:
no Atlântico, o eterno apelo à partida.
Lisboa, quase Europa...
Lisboa quase América...
Lisboa, ante-sala da África...
Lisboa, véspera da Índia...
Lisboa, esquina de Macau,
Lisboa, caminho da China.
Lisboa em si mesma resume
a contradição dos mundos
que se quiseram alheios
sem suas navegações,
que se quiseram distantes
sem seus astrolábios, mapas e varões.

Lisboa, verão de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Exercício de gravitação. Coimbra: Atlântida, 1972. p. 37-40.