sexta-feira, 15 de agosto de 2014

A irritante resignação

Restava saber se era isso que desejava... que parte cabia ao Brasil no seu coração? E na sua inteligência? O de que gostava, e que curtia aqui, não tinha preço. Nem nome. Era a alegria de respirar o ar de casa, de cheirar a roupa de cama lavada uma vez por semana, de ouvir gente falando português, de ler os jornais pendurados do lado de fora das bancas, de admirar o riso espontâneo que ainda enfeitava, apesar dos pesares, o rosto das pessoas. Mais desdentadas que fossem. Mas... e as agressões que sofria ao descer à rua? Os mendigos deitados nos vãos das portas, os pivetes em corridas desabaladas, fazendo acrobacias nas traseiras dos ônibus, as sarjetas imundas, as valas negaras a céu aberto, os passeios ocupados por carros e vendedores ambulantes, a desobediência às leis e às regras miúdas da convivência... Ficaria livre de tudo isso. E de muito mais. Até da irritante resignação dos brasileiros diante da corrupção, da injustiça, da fraude, da impunidade e da demagogia dos políticos. Só que a inconsciência, ou talvez a pouca seriedade com que se comportam, não é para desprezar-se: se não a tivessem, como sobreviveriam aos trancos da miséria, da calamidade e da desigualdade social? A inconsciência aqui é uma forma de defesa...

QUEIROZ, Maria José de. Sob os rios que vão. Rio de Janeiro: Atheneu-Cultura, 1990. p. 336.