domingo, 9 de novembro de 2014

Âncora e porto

Qu'il soit un port
où l'orgueil à la proue
y dorme en l'eau qui dort

(Henri de Regnier)


Entre a noite e o crepúsculo,
um porto, águas dormidas,
silêncio.

Na areia imóvel,
rastos de pés ligeiros.
O vento, em espiral,
rompe as amarras do sossego.
Em velas ociosas
a memória naufraga seus segredos.


Na linha estável do horizonte,
o sol abre, distraído,
sua cornucópia de cores:
distante, presente,
o passado se alonga
na debandada de pássaros,
nas nuvens em atropelo.

O orgulho descansa remorsos
em rochedos de grandeza.
Tormentas, sirtes, penedos
autorizam quimeras, visões, receios.

No sigilo da proa
a luz amadurece a âncora,
grávida de abismos iminentes.
Da profundeza do mar emerge,
constelada de signos,
a espuma profética.
Oh transparente monumento
Donde el instante brilla y se repite
Y se abisma en si mismo y nunca se consume!

Paris, verão de 1974.

domingo, 2 de novembro de 2014

Sem tribuna de papel

Sem uma tribuna de papel, como vê, ninguém aqui logra defender-se publicamente: palavra puxa palavra, às palavras se seguem as ações, à violência do verbo, que esgrimem uns contra os outros, sucede a violência física, ou a violência propriamente dita que é, hoje, uma instituição nacional. Seu tio não estava preparado para viver num país como o nosso. Ainda que os seus ideais políticos se abrigassem sobre a bandeira negra do anarquismo, derivavam, em linha reta, do evangelho de Tolstói. Nunca li Tolstói. Mas era o que ele proclamava. Sua estatura, seu vozeirão, seus modos agressivos, seus protestos contra a injustiça e contra a opressão não abrigavam ódio: eram fruto de amor, provinham do sentimento de fraternidade universal. Detestava a Igreja, isso sim, e abominava a política e o poder.

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 128-129.