domingo, 26 de fevereiro de 2012

Minas além do som, Minas Gerais

A Carlos Drummond de Andrade

Todos os caminhos do mundo se abriram em veredas,
veredas de sertão mineiro, severo, agreste.
Todos os muros se fizeram montanhas,
montanhas de Minas, graves, austeras.
Corri países, mudei constelações
de vário brilho e diferente estrela.
Descobri parentes vascos e belgas,
duas tias em Lião.
- Outra fala, outra costela,
distinto sangre, nova pele.
Primos de todos os graus,
dos quatro cantos da terra,
completaram a família
em Cocais e Cláudio começada
e hoje, longe, tão  longe dos gerais
ganha continentes, espalha-se sobre o mapa,
em roda larga, completa.
Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcatéia.
Na esquina de mim mesma
entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam
montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado
a paz se restabelece.
Minas existe.
Vivo de sua herança: ilesa.

Paris, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 221-224.

Minas Gerais, "estado d'alma"










Para Manuel Bandeira

Minas soluça em todos os nossos remorsos.
Em cada abstinência, sacrifício,
em cada continência, frustração.
Entre os grandes, amordaçar-se,
entre os pequenos, calar-se;
presença quase ausência,
nenhum desejo de ser notado.
Os olhos baixos, o riso raro,
a modéstia escondida
na voz tímida, no gesto tardo.
O mineiro se exime de escândalo
para condenar-se ao hábito.
Na alma, o maior dos pecados:
a vaidade de não ter vaidade.
Sobriedade no vestido,
mesa frugal, alguma carne;
feijão, angu e couve,
pouco açúcar, queijo, café ralo.
Nos pés calçados de ferro,
o peso da gravidade.
Longe de Minas o luxo, o mar, o alarde.
Metade da vida se perde
no silêncio prolongado,
na saudade das grandes águas,
na nostalgia de longos praias.
Na montanha elevada,
a nossa maior audácia:
o olhar arrebatado
inventa façanha e obstáculo.
No sonho de liberdade tardia,
a Utopia malograda;
na cisma do cigarro de palha,
metafísica de fumaça;
no latim e na gramática,
a rêmora do Caraça;
na linguagem monossilábica,
retórica de estilo ático;
no culto da família, tradição e propriedade,
ronha de sacristia,
muita traça.
No sertão bravo e zona da mata,
a filosofia do asfalto:
Arinos e Riobaldo.
a verdade verdadeira é que Minas soluça
em todos os nossos remorsos;
os gerais justificam
a nossa lentidão e cansaço:
Minas Gerais, "estado d'alma".

Belo Horizonte, dezembro de 1971.

QUEIROZ, Maria José de. Como me contaram... fábulas historiais. Belo Horizonte: Imprensa/Publicações, 1973. p. 14-16.