domingo, 15 de maio de 2011

Entre o ensaio e a ficção, por Maria José de Queiroz


É preciso esclarecer: sou uma estudiosa. Tenho passado grande parte da minha vida nas bibliotecas e nas salas de aula. Concederam-me até o privilégio de permanecer, trancada à chave, durante o almoço, em Coimbra, na sala de leitura da biblioteca da Universidade, em Frankfurt, na Deutsche Bibliotek, e, em Paris, na Bibliothèque de la Sorbonne. Vivo numa torre de papel. Entenda-se: não de marfim. Ainda assim, longe dos lugares onde se decide a nomeada do best seller. Vivo para os livros, não dos livros. Digo que tenho cinco leitores. Para minha surpresa, sempre aparece quem se declare meu sexto leitor. É para ele que escrevo; os demais são cativos. Incluo-me, portanto, entre os autores de 'imensa minoria'. Não que escreva 'difícil'. A clareza é a polidez do escritor. E para não distanciar-me da rua nem do povo, freqüento o humano, o demasiadamente humano: o amor, a droga, a loucura, a violência, a prisão, a comida, o automóvel, o tango... Esses, os meus temas. Tratei de humilhados e ofendidos, de excluídos e de minorias. Escrevi extensamente sobre o índio e sobre o negro, sobre os judeus, a mulher e o espaço urbano, o exílio e a pobreza. Por que não tenho mais audiência?...
O ensaio é a minha forma natural de expressão, pois sou professora, professora de literatura. Mas como me dirijo, na página escrita, ao leitor comum, varro do texto o jargão catedrático. E... principalmente, não dou respostas. Deixo isso para os filósofos. Tento, ensaio (aí está) explicar, de forma acessível, o assunto abordado. Ao modo de Montaigne, o autor dos Ensaios, guia-me o acaso. E escrevo até que julgue ter levantado um número suficiente de questões. Claro que não esgoto o assunto. Foi o que fiz ao falar do exílio e dos exilados: voltei aos hebreus, cheguei aos dias de hoje, mas não esgotei o repertório da infâmia. Ensaiei. Apenas isso.
Nada existe de mais grato aos sentidos e à inteligência do escritor que escrever. Mas, também, nada mais terrível, nem mais angustiante. Quando se escreve ensaio – veículo natural do estudo, apto à análise de interesse e mérito literário, sociológico ou filosófico – escolhe-se, antes de enfrentar a página branca, o tema a abordar. No caso da ficção, nem sempre isso acontece. Parte-se de um pretexto: uma notícia na imprensa, um episódio subitamente resgatado pela memória, um incidente que desperte nossa atenção sem motivo claro, plausível.
A verdade verdadeira é que, grato ou angustiante, o ato da criação nos redime das misérias do cotidiano. Por isso, e muito mais, estou pensando em deixar o ensaio e instalar-me, mala e cuia, na ficção. Adeus notas de rodapé, citações, índices, prefácios, posfácios, bibliografias exaustivas... Viva a criação.


Fonte: http://www.klickescritores.com.br/mjqueiroz00.html