sábado, 25 de junho de 2011

Os males do exílio: um inventário, por Lyslei Nascimento

Uma página fundamental da história do exílio no Ocidente é Os males da ausência ou A literatura do exílio de Maria José de Queiroz. O olhar sensível da escritora fazem um inventário dos males da ausência e rastreiam, nas obras dos expatriados, a “síndrome do desterro”: o sofrimento e a dor do exílio.

Dedicado aos brasileiros exilados – de ontem e de sempre –, o ensaio parte do mais remoto exílio de que se tem notícia – o do egípcio Sinuhe (cerca de 2000 a . C.) até o arquivo de Herman Görgen, “o amigo do Brasil”. Dante, Camões, Leão Hebreu, além de Defoe e Victor Hugo, só para citar alguns, são autores estudados pela ensaísta que se envereda também pelo destino dos jesuítas desterrados, pela reescrita irônica da correspondência de Voltaire, pelas ilhas de Rosseau, pelo passado reinventado de Nabokov e pela narrativa angustiante do exílio e morte de Walter Benjamin: a primeira verdadeira perda que Hitler impôs à literatura alemã.

O leitor – aquele que deverá acompanhar a ensaísta por esse mapa de infâmia – não pode perder de vista a nostalgia e as privações em terra alheia de que dá notícia a palavra no exílio. Além de ser agraciado com uma narrativa que aponta, não só para o mal, o leitor perceberá as saídas dos escritores na contingência do desterro. Esse tom do ensaio – entre os males da ausência e as estratégias de sobrevivência – aponta para questões cruciais pra o estudo da literatura do exílio: o sentimento patriótico, as tradições e as culturas que se entrecruzam e a dependência à língua.

Os capítulos dedicados ao exílio e ao êxodo bíblicos são primorosos. Neles, Maria José reflete sobre a fundação da primeira cidade pelo desterrado Caim; a configuração mítica de Jerusalém e o exílio na Babilônia. A diáspora do povo judeu até a bíblica Sefarad (Hispânia) e os anos de ouro do convívio pacífico entre judeus e muçulmanos são apontados pela escritora como fatores determinantes do progresso da literatura, da arte e da ciência.

No capítulo “Amargo ar do exílio – vinho envenenado”, o leitor acompanhará as narrativas dos escritores russos emigrados como Nabokov, Brecht e Nina Berberova. Em “A outra Alemanha”, Maria José desfia as malhas do poder que determinam o degredo e o sentimento de alijamento da “terra ancestral” e da língua.

Algumas frases dos escritores do exílio, citadas pela escritora, iluminam o ensaio, como por exemplo a reflexão sobre a pátria de Séneca: “O mundo inteiro é nossa pátria para que o nosso valor se prove com amplidão”; o pensamento de Hannah Arendt “A língua materna é a única coisa que se pode levar consigo quando se deixa a velha pátria” e a sentença de Peter Weiss: “Aquele que emigra uma vez será sempre emigrante”.

O ensaio é acompanhado por dois cadernos iconográficos, cerca de quarenta reproduções fotográficas, que trazem para o leitor a imagem de alguns dos escritores analisados. Destacam-se, célebres, a especialíssima fotografia da expulsão de Soljenitsine da Rússia e a de Bertold Brecht e Oskar M. Graf numa cervejaria. Também acompanha Os males da ausência ou A literatura do exílio uma extensa bibliografia, cerca de 800 títulos, que constitui uma valiosa contribuição para estudiosos e pesquisadores que se têm debruçado sobre a história dos intelectuais.

A escrita do exílio examinada pela escritora configura-se, assim, como um vasto painel do pensamento humano que aflora das páginas do ensaio em sua beleza e pertinência. Nesses tempos em que a luta contra os poderes arbitrários se faz tão necessária, instiga-nos, no livro de Maria José de Queiroz, o olhar lúcido do intelectual brasileiro para a produção cultural do Ocidente e suas reverberações na instância das relações entre o homem, a escrita e os seus algozes.

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 714p.

A América, essa nebulosa, por Lyslei Nascimento

A América é, de modo muito significativo, o mundo ao qual se arrebatou o nome. Essa epígrafe de Arturo Uslar Pietri introduz os instigantes ensaios de Maria José de Queiroz em A América sem nome. Na série de ensaios que compõem o livro, a escritora retoma algumas reflexões teóricas iniciadas em A América: a nossa e as outras, 1992. Esses ensaios intentam localizar a América Latina no contexto mundial contemporâneo, explorar algumas manifestações culturais como o tango argentino e a poesia antilhana, compor os perfis dos escritores César Vallejo e Pablo Neruda e dar uma visão literária de Perón e do peronismo.

No ensaio intitulado “A América Latina no mundo moderno”, Queiroz focaliza o ponto de vista dos americanos do Norte para a qual, segundo a autora, a América do Sul, não passa de uma unidade nebulosa “sacudida por tormentas políticas, varrida pelos ventos da discórdia civil e militar” e composta por países exóticos cujas cidades - Rio de Janeiro ou Buenos Aires - são apontadas como “capitais de qualquer um dos países desse aglomerado de republiquetas sem história e sem tradição”.

Outra preocupação da ensaísta é o nacionalismo que se apresenta com um duplo corte: o que reduz a pátria às fronteiras do mundo conhecido e que reduz o conceito de nação à terra cultivada, a paisagem rural ou urbana onde se planta a casa, o lar; e, por outro lado, “o nacionalismo às avessas que valoriza o que vem de fora em detrimento daquilo que existe, que se produz e que se realiza dentro das fronteiras”.

No ensaio “A Literatura hispano-americana - essa desconhecida”, a escritora, aborda a dificuldade de se referir a América, diante da diversidade e do fragmentarismo, mas aponta para uma possibilidade de equilíbrio ao refletir sobre uma “consciência integradora” que não exclui a herança ocidental, mas que a assimila e a absorve na sua modalidade atlântica. Por essa via, Maria José de Queiroz refere-se a alguns exemplos da intrusão americana na literatura européia. Como, por exemplo, o judeu sefardita Leão Hebreu, o mexicano Juan Ruíz de Alarcon e Jorge Luis Borges.

Em “O homem macho e a hombría: variações em torno do machismo”, a escritora parte da distinção entre “exercício de bravura” e o “machismo exibicionista”. De acordo com a autora, a o culto da hombría, da virilidade agressiva aparece, geralmente, nas sociedades em formação e que os principais herdeiros do patrimônio violento, sagaz e mítico são, entre outros, os vaqueiros, os cowboys, os tropeiros, gaúchos. Nesse ensaio, Maria José de Queiroz estuda a interessante figura do Don Juan e a incerta certidão de virilidade conferida por sua vasta biografia amorosa. Segundo a autora, a fome de amor e a insatisfação exibem no caráter do “burlador de Sevilha” sua falência enquanto “homem viril e inteiro”.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997, 197p.

sábado, 11 de junho de 2011

Amore


















Minhas mãos anoiteceram
na negra prisão dos teus cabelos.

No teu olhar sombrio
repousei alacridades claras
da luz fatigante do dia.

Fez-se noite,
Noite escura, densa,
de noturno apassionato,
con brio.

Rendida ao seu sortilégio,
entre sombra e penumbra,
abriguei pudores,
disfarcei deliquios.

Nos teus ombros firmes
busquei asas,
precipitei-me contigo.

À margem dos teus nervos
ouvi derivarem rios.

Nos teus músculos tensos
peixes e cardumes
fugiam ao meu abraço
e na fugida me levavam,
rápidos, umentes, frios.

No coleio das águas envolvida,
ficava e repartia.
Ao apelo da ribeira,
ora dilatava,
ora corria.

De surpresa em surpresa empolgada
diante de mim tuas constelações se abriram:
recitei tuas estrelas,
de caricioso pastoreio,
enquanto nos teus olhos esplendia
céu de azul profundo - maravilha!
noturno apassionato, con brio.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 35.

A herança de Caim


O doce Abel
Caim, o mau.
A inocência lastimada,
a violência impune
murmuram nos nossos ouvidos
melopéia inquietante
de fatigado estribilho.
O seu eco nos atormenta
com triste acento
e renovado luto.
A morte de Abel
- crime sem vingança,
sangra nas nossas mãos:
o seu corpo, insepulto,
povoa o vazio obscuro
onde a dor é castigo.
Nas suas pálpebras lentas
a noite flui
como um pássaro fúnebre
em nebuloso aprendizado
de guerra e discórdia.
Nas nossas trevas,
um imóvel esplendor:
a herança de Caim multiplicada.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 41. 

Os animais pastam, o homem come; apenas o homem de espírito sabe comer


E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se a mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 60.