quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Ano novo, vida nova

Talvez comece aí a minha novela. Não me tenta, contudo, a ficção oclusa, cerrada em si mesma: o vivido camuflado pelo escrito. Não submeteria a minha personagem, ainda que autobiográfica, à contingência de uma existência puramente fictícia, alheia ao presente e às suas vicissitudes. Gostaria de inserir-lhe a vida numa intriga jamais inaugurada, jamais concluída. Sem princípio nem fim. De modo a fazê-la participar da essência mesma do tempo. Contínua e sempre continuada. Será isso possível? Ficção sem fixação. Para reencontrar, realmente, os sentimentos e as emoções experimentadas.

QUEIROZ, Maria José de. Ano novo, vida nova. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 30.

domingo, 6 de novembro de 2011

Todos os males da alma

Não há como negar: os trágicos gregos diagnosticaram todos os males da alma. A Shakespeare, Dostoievski, Flaubert e Zola caberia, andando o tempo, atualizar os sintomas de algumas das suas patologias e vincar o caráter mórbido dos seus desvios. Quando Freud chegou, só teve, mesmo, o embaraço da escolha. A primeira anamnese, a mais extensa, de nossas paixões como de nossos vícios e, também, de nossas virtudes, já estava feita. À ciência competia a comprovação, o estudo de casos, a identificação de édipos e eletras, hamlets, macbeths e karamazovs na conduta psicopatológica dos burgueses do nosso século, assegurada a validade científica da identificação. Tudo se passa como se o psicanalista ouvisse do cliente a mais perfeita auto-análise de um caso clínico. E o que é excepcional, nos termos próprios e sem atentados à língua. A literatura põe à disposição o que poucos pacientes estão habilitados a fazer: o mergulho no inconsciente. Com os olhos abertos, sem traumas, sem megalomanias e sem delírios. Tal requinte descritivo dificilmente ocorreria ao analista, muito mais atento ao "fenômeno", e a tudo que aproxime o sujeito da patologia, do que à sua essencial individualidade (inerente à criação literária). Que resta à ciência? A responsabilidade de uma nomenclatura adequada e o endosso idôneo de um especialista, apto a divulgá-la.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 11-12.

sábado, 30 de julho de 2011

A pobreza: João Antônio, a fotografia

Salvo melhor juízo, difícil será apontar um autor contemporâneo, de prosa requintada, se bem que popular, que melhor se alinhe neste acervo da pobreza que João Antônio, o autor do clássico Malagueta, perus e bacanaço. Não podemos aproximar-nos do cotidiano de ternura, aspereza e sofrimento das suas personagens sem um descortino da literatura proletária - escrita por operários, e da literatura popular - de autores cultos. Porque tudo está aí, nesse clássico. Todos os percalços e todas as conquistas do gênero, que se mimetiza com o meio, que sorve e absorve o ambiente para transmiti-lo no sentimento, nas emoções, nos gestos e o boleio das frases num tom tão afinado que torna o autor parente, senão pai, do mendigo, da prostituta, do jogador de sinuca, do malandro, do ladrão, do meninão do caixote.

QUEIROZ, Maria José de. Em nome da pobreza. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006. p. 191.

sábado, 25 de junho de 2011

Os males do exílio: um inventário, por Lyslei Nascimento

Uma página fundamental da história do exílio no Ocidente é Os males da ausência ou A literatura do exílio de Maria José de Queiroz. O olhar sensível da escritora fazem um inventário dos males da ausência e rastreiam, nas obras dos expatriados, a “síndrome do desterro”: o sofrimento e a dor do exílio.

Dedicado aos brasileiros exilados – de ontem e de sempre –, o ensaio parte do mais remoto exílio de que se tem notícia – o do egípcio Sinuhe (cerca de 2000 a . C.) até o arquivo de Herman Görgen, “o amigo do Brasil”. Dante, Camões, Leão Hebreu, além de Defoe e Victor Hugo, só para citar alguns, são autores estudados pela ensaísta que se envereda também pelo destino dos jesuítas desterrados, pela reescrita irônica da correspondência de Voltaire, pelas ilhas de Rosseau, pelo passado reinventado de Nabokov e pela narrativa angustiante do exílio e morte de Walter Benjamin: a primeira verdadeira perda que Hitler impôs à literatura alemã.

O leitor – aquele que deverá acompanhar a ensaísta por esse mapa de infâmia – não pode perder de vista a nostalgia e as privações em terra alheia de que dá notícia a palavra no exílio. Além de ser agraciado com uma narrativa que aponta, não só para o mal, o leitor perceberá as saídas dos escritores na contingência do desterro. Esse tom do ensaio – entre os males da ausência e as estratégias de sobrevivência – aponta para questões cruciais pra o estudo da literatura do exílio: o sentimento patriótico, as tradições e as culturas que se entrecruzam e a dependência à língua.

Os capítulos dedicados ao exílio e ao êxodo bíblicos são primorosos. Neles, Maria José reflete sobre a fundação da primeira cidade pelo desterrado Caim; a configuração mítica de Jerusalém e o exílio na Babilônia. A diáspora do povo judeu até a bíblica Sefarad (Hispânia) e os anos de ouro do convívio pacífico entre judeus e muçulmanos são apontados pela escritora como fatores determinantes do progresso da literatura, da arte e da ciência.

No capítulo “Amargo ar do exílio – vinho envenenado”, o leitor acompanhará as narrativas dos escritores russos emigrados como Nabokov, Brecht e Nina Berberova. Em “A outra Alemanha”, Maria José desfia as malhas do poder que determinam o degredo e o sentimento de alijamento da “terra ancestral” e da língua.

Algumas frases dos escritores do exílio, citadas pela escritora, iluminam o ensaio, como por exemplo a reflexão sobre a pátria de Séneca: “O mundo inteiro é nossa pátria para que o nosso valor se prove com amplidão”; o pensamento de Hannah Arendt “A língua materna é a única coisa que se pode levar consigo quando se deixa a velha pátria” e a sentença de Peter Weiss: “Aquele que emigra uma vez será sempre emigrante”.

O ensaio é acompanhado por dois cadernos iconográficos, cerca de quarenta reproduções fotográficas, que trazem para o leitor a imagem de alguns dos escritores analisados. Destacam-se, célebres, a especialíssima fotografia da expulsão de Soljenitsine da Rússia e a de Bertold Brecht e Oskar M. Graf numa cervejaria. Também acompanha Os males da ausência ou A literatura do exílio uma extensa bibliografia, cerca de 800 títulos, que constitui uma valiosa contribuição para estudiosos e pesquisadores que se têm debruçado sobre a história dos intelectuais.

A escrita do exílio examinada pela escritora configura-se, assim, como um vasto painel do pensamento humano que aflora das páginas do ensaio em sua beleza e pertinência. Nesses tempos em que a luta contra os poderes arbitrários se faz tão necessária, instiga-nos, no livro de Maria José de Queiroz, o olhar lúcido do intelectual brasileiro para a produção cultural do Ocidente e suas reverberações na instância das relações entre o homem, a escrita e os seus algozes.

QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou a literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, 714p.

A América, essa nebulosa, por Lyslei Nascimento

A América é, de modo muito significativo, o mundo ao qual se arrebatou o nome. Essa epígrafe de Arturo Uslar Pietri introduz os instigantes ensaios de Maria José de Queiroz em A América sem nome. Na série de ensaios que compõem o livro, a escritora retoma algumas reflexões teóricas iniciadas em A América: a nossa e as outras, 1992. Esses ensaios intentam localizar a América Latina no contexto mundial contemporâneo, explorar algumas manifestações culturais como o tango argentino e a poesia antilhana, compor os perfis dos escritores César Vallejo e Pablo Neruda e dar uma visão literária de Perón e do peronismo.

No ensaio intitulado “A América Latina no mundo moderno”, Queiroz focaliza o ponto de vista dos americanos do Norte para a qual, segundo a autora, a América do Sul, não passa de uma unidade nebulosa “sacudida por tormentas políticas, varrida pelos ventos da discórdia civil e militar” e composta por países exóticos cujas cidades - Rio de Janeiro ou Buenos Aires - são apontadas como “capitais de qualquer um dos países desse aglomerado de republiquetas sem história e sem tradição”.

Outra preocupação da ensaísta é o nacionalismo que se apresenta com um duplo corte: o que reduz a pátria às fronteiras do mundo conhecido e que reduz o conceito de nação à terra cultivada, a paisagem rural ou urbana onde se planta a casa, o lar; e, por outro lado, “o nacionalismo às avessas que valoriza o que vem de fora em detrimento daquilo que existe, que se produz e que se realiza dentro das fronteiras”.

No ensaio “A Literatura hispano-americana - essa desconhecida”, a escritora, aborda a dificuldade de se referir a América, diante da diversidade e do fragmentarismo, mas aponta para uma possibilidade de equilíbrio ao refletir sobre uma “consciência integradora” que não exclui a herança ocidental, mas que a assimila e a absorve na sua modalidade atlântica. Por essa via, Maria José de Queiroz refere-se a alguns exemplos da intrusão americana na literatura européia. Como, por exemplo, o judeu sefardita Leão Hebreu, o mexicano Juan Ruíz de Alarcon e Jorge Luis Borges.

Em “O homem macho e a hombría: variações em torno do machismo”, a escritora parte da distinção entre “exercício de bravura” e o “machismo exibicionista”. De acordo com a autora, a o culto da hombría, da virilidade agressiva aparece, geralmente, nas sociedades em formação e que os principais herdeiros do patrimônio violento, sagaz e mítico são, entre outros, os vaqueiros, os cowboys, os tropeiros, gaúchos. Nesse ensaio, Maria José de Queiroz estuda a interessante figura do Don Juan e a incerta certidão de virilidade conferida por sua vasta biografia amorosa. Segundo a autora, a fome de amor e a insatisfação exibem no caráter do “burlador de Sevilha” sua falência enquanto “homem viril e inteiro”.

QUEIROZ, Maria José de. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997, 197p.

sábado, 11 de junho de 2011

Amore


















Minhas mãos anoiteceram
na negra prisão dos teus cabelos.

No teu olhar sombrio
repousei alacridades claras
da luz fatigante do dia.

Fez-se noite,
Noite escura, densa,
de noturno apassionato,
con brio.

Rendida ao seu sortilégio,
entre sombra e penumbra,
abriguei pudores,
disfarcei deliquios.

Nos teus ombros firmes
busquei asas,
precipitei-me contigo.

À margem dos teus nervos
ouvi derivarem rios.

Nos teus músculos tensos
peixes e cardumes
fugiam ao meu abraço
e na fugida me levavam,
rápidos, umentes, frios.

No coleio das águas envolvida,
ficava e repartia.
Ao apelo da ribeira,
ora dilatava,
ora corria.

De surpresa em surpresa empolgada
diante de mim tuas constelações se abriram:
recitei tuas estrelas,
de caricioso pastoreio,
enquanto nos teus olhos esplendia
céu de azul profundo - maravilha!
noturno apassionato, con brio.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 35.

A herança de Caim


O doce Abel
Caim, o mau.
A inocência lastimada,
a violência impune
murmuram nos nossos ouvidos
melopéia inquietante
de fatigado estribilho.
O seu eco nos atormenta
com triste acento
e renovado luto.
A morte de Abel
- crime sem vingança,
sangra nas nossas mãos:
o seu corpo, insepulto,
povoa o vazio obscuro
onde a dor é castigo.
Nas suas pálpebras lentas
a noite flui
como um pássaro fúnebre
em nebuloso aprendizado
de guerra e discórdia.
Nas nossas trevas,
um imóvel esplendor:
a herança de Caim multiplicada.

QUEIROZ, Maria José de. Resgate do real: amor e morte. Coimbra: Coimbra, 1978. p. 41. 

Os animais pastam, o homem come; apenas o homem de espírito sabe comer


E quem sabe comer é gastrônomo. A dignidade da gastronomia apoia-se não só numa forte estrutura econômica, que lhe confere peso, medida e cifra, como se exalta, igualmente, no refinamento da mais imediata das funções fisiológicas. Assim, a alegria de sentar-se a mesa para responder a uma das leis da sobrevivência deve antecipar-se na leitura do cardápio, expandir-se na discussão das iguarias, concretizar-se na degustação e prolongar-se em gesto e palavra de louvor à sua forma, feitio, cor e apresentação. O conviva celebra no silencioso e recolhido ato de saborear a comida o talento do artista criador. Pouco importa o caráter efêmero da obra criada: a receita é partitura que se repete e volta a deliciar indefinidamente.

QUEIROZ, Maria José de. A comida e a cozinha: iniciação à arte de comer. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 60.

domingo, 15 de maio de 2011

Entre o ensaio e a ficção, por Maria José de Queiroz


É preciso esclarecer: sou uma estudiosa. Tenho passado grande parte da minha vida nas bibliotecas e nas salas de aula. Concederam-me até o privilégio de permanecer, trancada à chave, durante o almoço, em Coimbra, na sala de leitura da biblioteca da Universidade, em Frankfurt, na Deutsche Bibliotek, e, em Paris, na Bibliothèque de la Sorbonne. Vivo numa torre de papel. Entenda-se: não de marfim. Ainda assim, longe dos lugares onde se decide a nomeada do best seller. Vivo para os livros, não dos livros. Digo que tenho cinco leitores. Para minha surpresa, sempre aparece quem se declare meu sexto leitor. É para ele que escrevo; os demais são cativos. Incluo-me, portanto, entre os autores de 'imensa minoria'. Não que escreva 'difícil'. A clareza é a polidez do escritor. E para não distanciar-me da rua nem do povo, freqüento o humano, o demasiadamente humano: o amor, a droga, a loucura, a violência, a prisão, a comida, o automóvel, o tango... Esses, os meus temas. Tratei de humilhados e ofendidos, de excluídos e de minorias. Escrevi extensamente sobre o índio e sobre o negro, sobre os judeus, a mulher e o espaço urbano, o exílio e a pobreza. Por que não tenho mais audiência?...
O ensaio é a minha forma natural de expressão, pois sou professora, professora de literatura. Mas como me dirijo, na página escrita, ao leitor comum, varro do texto o jargão catedrático. E... principalmente, não dou respostas. Deixo isso para os filósofos. Tento, ensaio (aí está) explicar, de forma acessível, o assunto abordado. Ao modo de Montaigne, o autor dos Ensaios, guia-me o acaso. E escrevo até que julgue ter levantado um número suficiente de questões. Claro que não esgoto o assunto. Foi o que fiz ao falar do exílio e dos exilados: voltei aos hebreus, cheguei aos dias de hoje, mas não esgotei o repertório da infâmia. Ensaiei. Apenas isso.
Nada existe de mais grato aos sentidos e à inteligência do escritor que escrever. Mas, também, nada mais terrível, nem mais angustiante. Quando se escreve ensaio – veículo natural do estudo, apto à análise de interesse e mérito literário, sociológico ou filosófico – escolhe-se, antes de enfrentar a página branca, o tema a abordar. No caso da ficção, nem sempre isso acontece. Parte-se de um pretexto: uma notícia na imprensa, um episódio subitamente resgatado pela memória, um incidente que desperte nossa atenção sem motivo claro, plausível.
A verdade verdadeira é que, grato ou angustiante, o ato da criação nos redime das misérias do cotidiano. Por isso, e muito mais, estou pensando em deixar o ensaio e instalar-me, mala e cuia, na ficção. Adeus notas de rodapé, citações, índices, prefácios, posfácios, bibliografias exaustivas... Viva a criação.


Fonte: http://www.klickescritores.com.br/mjqueiroz00.html

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes

Nem todos os caminhos são para todos os caminhantes. É necessário saber escolher. E bem. Nada de insegurança. Ao verdadeiro homem se conhece nos momentos de decisão. E tomada a decisão, aquele que tem fibra arca com as consequências. Chegado o momento, assuma suas responsabilidades. E não peça licença à sua mãe, nem ao seu pai, nem ao seu tio, nem ao cura nem ao delegado para viver. Viva a sua vida. Seja dono do próprio nariz. Se quebrá-lo, é seu. Ninguém tem nada a ver com isso. Homem de nariz quebrado, continua homem. E nariz a gente conserta. O que não se conserta, nem se remenda é a dignidade. Não está na cara, como o nariz. Apesar disso, é visível. E se estampa, com muita manha, nos olhos e nas vozes dos outros. Até no escuro. Convém, portanto, tratar de conservá-la. Vá, mundo afora, observando e aprendendo. Tire lição da vida alheia. Defeito visto ensina mais que elogio. E guarde silêncio: ouça e cale-se. Sempre que possível. Chamado a manifestar-se, comece por agir. Só dê opinião quando consultado. Se falar, fale afinado: na hora certa, sem fugir à medida do costume, no tom exato. Porque se replicarem, você fala mais alto, e domina a situação. Ninguém vence o cauteloso. Agora, em tempo de baile e de folga, não se faça de rogado: dance e cante. Obedecendo, sempre, ao compasso, atento aos costumes da sala. Uma coisa é certa: se o divertimento é bom, o trabalho é melhor. De experiência posso afirmar que o amor, o jogo, a comida e a bebida só enfeitam o mundo. O que dá sentido a tudo é o trabalho. Observe, por onde andar, como os homens e as mulheres trabalham. E chegará à seguinte conclusão: os mais felizes são aqueles que descobriram que o trabalho faz parte do dia, é tempero necessário à vida. Função natural leva ao amor, ao jogo, à comida e à bebida. Ainda aí, não se esqueça: toque afinado. O mundo é música escrita que você deve ler e interpretar. Prepare o fôlego, exercite as mãos e saiba usar os olhos. A vida é um dom. E viver, meu sobrinho, é uma vocação. 

QUEIROZ, Maria José de. Homem de sete partidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p. 42.

Folhas ao vento

Desde a Idade Média os corações apaixonados descobriram nos versos forma natural de expressão. Não é difícil comprová-lo. Mas, a despeito da generosa cumplicidade da poesia, "quase irmã do amor", os versos sujeitam-se, à revelia do sentimento, às emergências do acaso e da necessidade.
Desde o mood for love aos modos de amar, todas as gamas da paixão, com sua euforia e seus tormentos, chamejam ao calor da moda, ou de modismos eróticos, tanto como se deprimem à fria luz dos mitos freudianos.
No entanto, o que mais surpreende o leitor, enamorado ou não, é que a poesia nem sempre favorece a vida amorosa. E embora não se ouse afirmar que lhe seja nefasta, a aspereza do cotidiano se encarrega de despejá-la da vida e, muito mais frequentemente do que se crê, de separá-la do seu quase irmão, o amor.

QUEIROZ, Maria José de. Folhas ao vento. In: LEAL, Carlos. (Ed.) 21 histórias de amor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002. p. 243.

Nó da história

Não convém ignorar, no nó da história, que em rede bem urdida as  malhas todas dependem umas das outras, em cadeia longa, interminável. E se os homens esquecem às vezes a sutileza do tecido, não a esquecem os tecelões, demiurgos implacáveis. No enredo da vida humana, não há fios livres. Nem autônomos. A perniciosa dinastia dos homens sós perdeu-se, faz séculos, na história.

QUEIROZ, Maria José de. Amor cruel, amor vingador. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 119. 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

A comida é refeição, é convívio.

O simpósio, o banquete e o festim crismam-se como instituições sociais. E vinculam-se a todos os gêneros literários. O calor e as emoções do convívio abrangem inúmeros registros: da conversa amena à sátira mordaz, dos propos de table à oratória, dos almoços de negócios aos jantares diplomáticos e às ceias fúnebres. Embora dissimulada, a pretexto de mais nobres objetivos, a sensibilidade gustativa se faz aí representar: é em torno da mesa, sob a inspiração de um cardápio, no horário costumeiro das refeições, que os comensais se reunem. E o gosto fatalmente se insinua. A consequencia dessa ambiguidade? A metáfora do saber e do sabor: a língua que sabe é a língua que saboreia, que degusta.

QUEIROZ, Maria José de. A literatura e o gozo impuro da comida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 20.