domingo, 17 de outubro de 2010

A arma de maltrapilhos, famélicos e miseráveis

Maltrapilhos, famélicos e miseráveis nada têm além das algemas com que os acorrentavam os opressores. A sua arma: o fusil do calibre duplo: sangue e sangue. Toda a força lhes vem da humilhada debilidade, como ocorreu aos "Tácitos defensores de Guernica, / oh suaves ofendidos, / que os eleváis, crecéis y llenaís de poderosos débiles el mundo!"
No momento em que até os mortos de vigilantes ossos abandonam a sossegada tranquilidade da tumba para chorar as derradeiras mágoas, "tan muertos a los viles opresores, / reanudaron entonces sus penas inconclusas, / acabaron de llorar, acabaron / de esperar, acabaron de sufrir, acabaron de vivir, / acabarón, en fin, de ser mortales!" [...].


QUEIROZ, Maria José de. César Vallejo: ser e existência. Coimbra: Coimbra, 1971, p. 39.

Três tempos de dança



Para Jacques Cantel
Nos pés, o ritmo.
No corpo - acorde em movimento,
a harmonia.
Na linha imaginária – invenção caprichosa,
o horizonte em fuga,
a melodia.
Isadora dança.
Libélula frágil,
sopro em pausa,
o palco habita.
No equilíbrio instável
a tentação jamais lograda
de ser, apenas, forma volátil,
transparência sutil.

No espaço vago,
ocupado,
o tempo se concentra:
gesto e brio.
Nijinski dança.
A geometria em liberdade,
o gravitar ameaçado,
a espiral em delírio...

Ah, volúpia de alcançar,
no salto,
a quadratura do círculo,
o vértice do abismo!
A terra, coreógrafa do visível,
arrebata ao pequeno deus
o privilégio das asas,
lábil investidura
sujeita a pena e castigo.

Na eloquencia do concreto
a medida humana,
exata,
entre tempo e espaço contida.
Béjart dança:
ao solo se prende,
ao território se agarra.
Acorrentou-se o mito.

Londres, inverno de 1978.

QUEIROZ, Maria José de. Três tempos de dança. In: _____. Para que serve um arco-íris. Belo Horizonte: Imprensa Universitária, 1982, p. 28-29.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Tango: variedade na unidade

Também se chamam figuras os passos da dança portenha. Algumas, já conhecidas, como o molinete e o ocho, conservaram os antigos nomes. Constitui-se cada figura de uma combinação de passos que a mulher reelabora, ao revés, após o movimento do parceiro. Numa recriação inovadora, o par pode traçar dez, quarenta ou mais figuras. O homem as repete, em verdadeiras séries de variações, desdobrando-as, indefinidamente, ad libitum. Daí dizer-se que o tango, no momento da dança, se revela distinto de si mesmo, e "nunca chega a repetir-se com total exatidão". "Variedade na unidade",
eis a preceptiva clássica que Carlos Vega lhe atribui.


QUEIROZ, Maria José de. "Voulez-vous tanguer?" O tango argentino. In: _____. A América sem nome. Rio de Janeiro: Agir, 1997, p. 186.

O cemitério dos vivos, Lima Barreto

Impregnado da leitura dos escritores russos, especialmente de Dostoievski, O cemitério dos vivos sugere, no jogo de palavras - cemitério/casa, vivos/mortos, o parentesco entre a prisão e o asilo de alienados e uma resposta em contraponto às Recordações da casa dos mortos. Seu principal intuito parece ter sido o de evidenciar a exproriação da vida por parte da instituição cujo ofício é curar, e não segregar nem exterminar.
Excluído da sociedade, morto a seus olhos (como habitantes do cemitério dos vivos), vale-se Lima Barreto da momentânea experiência da loucura para observar os mecanismos de comportamento dos companheiros de infortúnio. Desempenha, para isso, de modo dramático, o papel de alienado.


QUEIROZ, Maria José de. A literatura alucinada: do êxtase das drogas à vertigem da loucura. Rio de Janeiro: Atheneu Cultura, 1990, p. 136.